São Paulo, quinta-feira, 16 de junho de 2011

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FOGO ALTO A visão de quem cozinha

LOURDES HERNÁNDEZ

Prazer até a última colherada


Gosto de sentar-me com pessoas dispostas a provar os cheiros e as texturas que podem não agradar a todos


NO MÉXICO existe um ditado que diz: "Quem fala demais, cai mais rápido que um coxo". Esse "fala demais" (o "hablador") está se referindo às pessoas cheias de opiniões, todas elas tão firmes como um pião em pé. Eu sou uma dessas.
Cada vez que recebo um fotógrafo que vai tirar foto de tal receita, vou avisando: aqui em casa não tem prato branco, odeio prato branco. Prato branco é que nem aquela piada misógina do marido que cancela a assinatura da revista de mulher pelada porque na página central vê sua lindíssima e nuíssima esposa.
O mundo do desejo exige movimento. Vontade de experimentar sempre mais um pouco, a fantasia de prolongar o prazer na última colherada. Considero-me imodestamente uma hedonista de amplo espectro (de novo, falei demais) e gosto de sentar-me à mesa com pessoas que desfrutam de cheiros e texturas que não necessariamente dão prazer a todos. O desejo obriga a cruzar limites imprevistos. Só a presença do outro já é uma oportunidade de ruptura e extravio. "Faz, te imploro, que eu seja tua culpa", escreveu Ovídio nas Heroidas.
Cresci com esses dois cenários misturados. No México ainda existem os banhos públicos. Vocês chegam juntos, pagam duas saunas individuais e já entram fazendo o pedido: suco de laranja, coquetel de camarão, os sapatos para engraxar. Não tem cama, mas os vapores são melhor que lençóis de 500 fios egípcios. A chuveirada final, fria e potente, lembra o corpo de que ele precisa se alimentar. Tudo num clima bem familiar.
Mas, volto ao meu primeiro assunto, aquele em que estava antes de divagar -porque em pão pensa quem com fome está. Como sou daquelas que tropeçam até inúmeras vezes na mesma pedra, há uma semana precisei engolir minhas próprias palavras: comprei no supermercado 12 pratinhos em forma de caracóis brancos, branquinhos.
Não combinam com nada, mas encho de sopinhas quentes e bebo em pé aquecendo minhas mãos que, às vezes, como Pilatos, lavo sem remorso, traindo-me alegremente.

LOURDES HERNÁNDEZ foi autora da coluna "La Cocinera Atrevida" em jornais mexicanos; hoje, faz jantares em casa, em São Paulo, para convidados


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