São Paulo, quinta-feira, 19 de maio de 2011

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COZINHA SENTIMENTAL MEMÓRIAS DA PONTA DA LÍNGUA

DONA DO BOLO DE ROLO

Aos 90 anos, Ana relembra a infância na roça e diz como foi passar mais da metade de sua vida preparando quitutes

LUIZA FECAROTTA
ENVIADA ESPECIAL A RECIFE

Completei 90 anos em 26 de março. Não sei há quantos faço o bolo de rolo. Aprendi na casa da dona Joaninha, com Joana, a empregada. Dona Joaninha, a patroa, era casada com um português.
Ela batia aquele bolo na mão, sempre depois do almoço. Deixava amarradinho numa toalha e só no outro dia o cortava. Quando Joana ficou doente, dona Joaninha perguntou se eu era capaz de fazer um bolo para ela. Naquele dia fiz meu primeiro bolo de rolo sozinha.
Depois trabalhei na casa de outros portugueses. Aqui, na Casa dos Frios, comecei a fazer o bolo à noite. Saía da casa do seu Amorim, outro patrão lusitano, e vinha para cá. Ficava até meia-noite fazendo as encomendas.
Era uma correria. Batia a massa, enformava e colocava no forno. E precisava ficar ali o tempo todo. Tirava uma bandeja, botava outra. Enquanto virava aquela massa e passava doce de goiaba, a outra estava assando.
Todos os dias eu batia a massa numa batedeira pequenininha, que não dava conta e ajudava com a colher de pau. Hoje, não faço mais bolo de rolo. E não tenho mais apetite para comer.

ROÇA
Nasci no interior de Pernambuco. Me criei plantando. Acordava cedo, andava uma légua para chegar no roçado. Comecei tão nova, que nem lembro.
No sítio onde a gente morava, minha mãe cozinhava feijão, cuscuz, angu de milho, macaxeira, batata... No Natal, matava um porquinho para todo mundo comer.
O que eu mais gostava era de feijão com jerimum caboclo da minha avó, com folha de mostarda, que tem um "amarguinho". Sabe como é? Pequeno, bem durinho.
Hoje, a gente bota tudo no feijão e não tem gosto. No da minha avó ela botava pouquíssima coisa e era gostoso. Não sei se é porque a gente era novo e tinha paladar. Quando vai crescendo vai perdendo, né? Não sei...

DE TREM PARA RECIFE
Foi uma coisa tão de repente. A gente estava na roça e avistava o trem passar distante. Eu dizia: "Qualquer dia eu vou viajar nesse trem".
Dizia aquilo na brincadeira, mas na semana seguinte fui para feira com a minha mãe -ela vendia tapioca para uma senhora, que estava com uma irmã doente na capital. Pediu para minha mãe uma menina para ajudar. Fiquei numa alegria só.
Vim de trem para Recife. Era um 29 de janeiro. O ano eu não lembro, não. Eu sentia muito a falta de casa, mas eu pensava assim: "Vou ficar, vou trabalhar. Não quero que ninguém diga que eu não soube fazer nada".
Trabalho até hoje. Mas cozinhar, assim, tem dia que a gente gosta, tem dia que a gente não gosta. Tem dia que você está inspirada e tem dia que a mente fecha e você não sabe o que fazer.
Eu nem gosto de cozinhar mais [risos]. Eu gosto que cozinhem pra mim [mais risos].


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