São Paulo, quinta-feira, 20 de outubro de 2011

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NINA HORTA

Minha mãe e a cozinha: um enigma


O mais chique para ela era grapefruit. E claras em neve com a emoção de virar o prato de cabeça para baixo

Há um enigma na minha vida em relação à minha mãe e sua cozinha. Digamos que Belo Horizonte há quase cem anos deveria ser uma cidade pequena, sem restaurantes, sem revistas femininas, sem livros de receitas. Tudo estaria em caderno de receitas, em caderno passado de mãe para filha, comidas de todo dia feitas à perfeição.
Pois minha avó nunca teve um caderno de receitas, nem pensar, e minha mãe muito menos. Manuais de culinária neres. Minto. Durante toda a vida vi um exemplar do Rosamaria na minha casa, jamais tocado.
Digamos que já o tivesse lido de cabo a rabo, e quando apareci na vida dela não precisava mais usá-lo. Não acredito. Casou-se mocinha, mudou para o Rio e era diretora de um colégio de crianças com deficiências mentais que a deixavam ocupadíssima. Tenho vaga lembrança de empregadas meninas cantando alto e jogando tomates umas nas outras dos terraços das edículas. Eram elas que obedeciam às suas ordens de comidinha diária.
Mudamos para São Paulo quando eu tinha cinco anos. Deixou o trabalho e ficava em casa, sempre muito ativa, inventando moda, costurando, indo à cidade, ao cinema, a comer um sanduíche no Ponto Fino Frio ou Fino? Junto da Augusta com meu pai. Era apaixonada por marrons-glacés, frequentava a feira da Lorena, ou era Oscar Freire?
Ensinava as empregadas a fazer verduras cozidas, durinhas, todo tipo de legumes, carás, inhames, couves finíssimas, cortadas daquele jeito que me viciaram de tal modo que hoje, quando vejo uma couve grossa ou mole posta em frigideira muito tempo antes do almoço, simplesmente emborco no lixo, tanto pesar me dá. E chuchu com camarões, o chuchu verde estalando e o camarão no ponto. Ela, que nem fora criada à beira-mar, como poderia saber lidar tão bem com camarões que nem comia? Pois sabia de tudo. De vez em quando, fazia macarrão em casa, dependurava no varal para secar. Era mais grosso que o comprado pronto, tinha sabor diferente, com certeza por causa da textura.
E picles? Onde aprendera a fazer picles? Guardava numa prateleira alta da cozinha para ficarem no ponto, eu fazia escalada de montanhas para subir e roubar uma cenourinha, um pedaço de couve-flor, que enchiam minha boca de água com seu azedo picante. Doces nem fazia muito, a não ser o de figo cristalizado e o de pêssego verde. O cristalizado fazia para meu avô paterno e mandava ao Rio, uma vez por ano. Grapefruit, por exemplo.
O mais chique para ela era grapefruit de entrada, quando vinha visita. E maionese feita à mão. E claras em neve com a emoção de virar o prato de cabeça para baixo, e chantili. Nenhum bicho lhe era estranho. Competitiva como poucas.
Se alguém da família trouxesse alguma comida comprada pronta ou feita por vizinha ou amiga que assim a desbancava, ela corria e fazia exatamente igual, até que o corriqueiro da coisa acabasse de vez com a novidade. E pastel de tudo, e tortas, e pavês, e nos anos 50 as primeiras carnes assadas e frutas, os agridoces que não existiam antes. Sabe-se lá onde aprendeu essas coisas, em meio a crianças e cartilhas. Sabe-se lá.

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