São Paulo, quinta-feira, 29 de setembro de 2011

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FOGO ALTO A visão de quem cozinha

MARA SALLES

Mistura peruana, sonho brasileiro


Sonhei com uma festança da cozinha brasileira que em nada se parecia àquela, mas que era bonita também


Impossível não ficar na pontinha dos pés, espichar o pescoço sobre o muro e espiar a bela celebração no terreno do vizinho. Era um espetacular parque de diversões com um circo ao centro; pelas palmas, apupos e momentos de silêncio dava para perceber que lá dentro tinha bastante artista. Mas a festa de verdade acontecia lá fora.
Rodeando o circo, um mundo de barraquinhas muito bem organizadas ofereciam à multidão iguarias que, pelo cheiro e aspecto, deviam estar deliciosas.
Campesinos da serra, da costa e da selva exibiam batatas disformes, grãos de milho gigantes e multicoloridos, frutas que nunca vi.
Faziam tanta reverência aos seus produtos que, pelo jeito, tinham aprendido com seus ancestrais.
"Pacha mama", "siembra" e "cosecha" eram verdadeiros mantras entre aqueles orgulhosos descendentes incas. Depois de tanto tempo espichada no muro, meu cotovelo começou a doer. Fui dormir.
Sonhei com uma festança da cozinha brasileira que em nada se parecia àquela. Mas que era bonita também.
As comidas eram descomplicadas e revelavam uma naturalidade tropical surpreendente.
Havia certa confusão, os cozinheiros traziam seus pratos prontos e, já que são muito ocupados, não tiveram disponibilidade de se reunir para definir um cardápio compartilhado, por isso sobravam acepipes e doces, e faltava substância.
Isso gerou um corre-corre e ninguém da cozinha se lembrou de ir ao salão articular ideias com convivas influentes, oferecer mais um torresmo, nada disso. Mas todos se divertiram: a cozinha era uma farra e os convidados, como sempre, se refestelaram e saíram à francesa.
O sonho termina com um lavrador brasileiro soprando no meu ouvido a tradução das palavras dos produtores peruanos: mãe terra, plantio e colheita; era o remorso que batia por não os ter ali reunidos conosco.
Acordei um pouco triste e fui trabalhar. No caminho, lembrei de um trecho de um poema: "Caminante, no hay camino, se hace camino al andar". A la lucha hermanos!

MARA SALLES é chef do restaurante Tordesilhas, de cozinha brasileira (rua Bela Cintra, 465, São Paulo)



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