Índice geral Cotidiano
Cotidiano
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros

Bichos

SÍLVIA CORRÊA correa-silvia@uol.com.br

Chip de solidariedade

Os motoristas metiam a mão na buzina e puxavam o carro, como se desviassem de uma pedra. Mas não havia pedra

Sexta, 2 de dezembro. O congestionamento em São Paulo batia todos os recordes e lá estava eu, presa na marginal Tietê. De repente, a fila de carros andou. E, à minha frente, um a um, os motoristas metiam a mão na buzina e puxavam o volante, como se desviassem de uma pedra. Mas não havia pedra.

Pelo meio-fio, entre a pista e o murinho do canteiro central, cambaleava um cachorro, saliva escorrendo, exausto. Quando ele se desequilibrava em direção à faixa, alguém o espantava com um buzinaço.

Ele passou por mim, mas a cena empurrou meu carro ao primeiro ponto de parada. As buzinas, agora, eram para mim. Paciência.

Fechei o carro e fui voltando pelo meio-fio. Ele andava no contra-fluxo e, mesmo a passos lentos, se afastava. Corri até chegar perto o bastante para chamá-lo, mas longe o suficiente para não assustá-lo. "Ei, vem cá!" Ele olhou para trás, abanou o toco de rabo e deu meia volta, caminhando em minha direção. Era um boxer, aparentemente de raça pura e com coleira.

Olhei em volta. Só havia carros e um conjunto habitacional que lhe rendeu o nome. Peguei Cingapura no colo e caminhei de volta entre buzinas e comentários de motoristas que berravam por um colinho. Difícil...

Levei Cingapura a uma clínica para banho, exames e o início de mais um processo de adoção. Estava cansada e atrasada, mas aliviada.

Cingapura cruzou meu caminho uma semana depois de Nice. Na sexta-feira anterior, estava a caminho do aeroporto de Congonhas quando, claro, o trânsito parou na 23 de Maio. À minha frente, um a um, os carros passaram a desviar de um Uno vermelho, estacionado na faixa da esquerda. Quando chegou a minha vez de desviar, notei que havia uma senhora apoiada na porta do motorista, claramente passando mal. Subi no canteiro central.

Com dificuldade ela me disse que se chamava Eunice e que havia se submetido a uma laparoscopia dias antes. Agora, mal conseguia respirar. A dor piorava. Achei o telefone do cirurgião na agenda de seu celular. A orientação foi clara: ela precisava ser levada a um hospital. E foi o que fizemos, com minha mãe me seguindo, ao volante do carro de Nice.

Nossa viagem a Congonhas só recomeçou duas horas depois, quando a filha de Nice chegou ao hospital. Estávamos cansadas e atrasadas, mas aliviadas.

Deixei Cingapura no banho pensando que tão importante quanto campanhas de castração são ações que conscientizem os donos dos animais da necessidade de identificá-los com placas na coleira ou chips sob a pele -ações simples e baratas que garantiriam a volta do animal perdido para casa assim que ele encontrasse alguém disposto a ajudá-lo.

Mas aí me lembrei de Nice. Ela tinha todos os documentos na bolsa, mas também estava na rua, sem socorro. Não se trata de igualá-los na dificuldade -embora não veja problema na comparação-, mas o princípio é o mesmo: é preciso olhar para o lado e notar o problema do outro, quem quer que seja esse outro!

Talvez antes de chip de identificação nos cães seja preciso pensar num botão que acione a solidariedade nos motoristas paulistanos.

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.