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São Paulo, quinta-feira, 01 de janeiro de 2004

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PASQUALE CIPRO NETO

Complicações desnecessárias

Leia este subtítulo jornalístico, publicado há dez dias: "Contribuintes têm gasto no cartão incompatível com a renda; 10 mil são suspeitos de omitir informações sobre imóveis".
Se me permite, caro leitor, sou capaz de apostar que, num primeiro momento, você entendeu "gasto" como particípio de "gastar" e não como substantivo (sinônimo de "despesa"). O resultado disso provavelmente foi a necessidade de reler o texto.
O que se quis dizer certamente ficaria mais claro com o deslocamento (e isolamento com vírgulas) da expressão "no cartão" ("Contribuintes têm, no cartão, gasto incompatível com a renda") ou com a pluralização do substantivo "gasto" ("Contribuintes têm, no cartão, gastos incompatíveis com a renda"). Seria possível também (e talvez melhor) partir para outras estruturas, como "No cartão, gasto de contribuintes é incompatível com a renda").
Vamos tomar o título original para mostrar como evitar certos "ruídos" na hora de escrever. Uma das primeiras providências é evitar que se possam formar falsos pares. Em "Contribuintes têm gasto no cartão incompatível...", por exemplo, a sequência "têm gasto" pode nos levar ao par "verbo "ter" + particípio", já que essa combinação é bem mais comum na língua do que a formada pelo verbo "ter" e o substantivo "gasto" (sinônimo de "despesa").
Nesse caso, é maior a incidência do substantivo no plural ("Eles têm gastos muito altos/despesas muito altas com a manutenção da frota", por exemplo).
Outro falso par é "cartão incompatível". Em "Contribuintes têm gasto no cartão incompatível...", o adjetivo "incompatível" não se refere ao substantivo "cartão", ao qual é contíguo, mas a "gasto", do qual está distante.
Como se vê, apesar de pequena, a frase exige malabarismos de quem a lê. Com todos esses "ruídos", o resultado não pode mesmo ser dos melhores.
Nossa conversa me fez lembrar um trecho jornalístico presente numa questão da Unicamp: "Ao chegar ao ancoradouro, recebeu Alzira Alves Filha um colar indígena, feito de escamas de pirarucu e frutos do mar, que estava acompanhada de um grupo de adeptos do Movimento Evangélico Unido". Acredite: o texto é real. A banca dizia que a organização sintática dada a certos textos cria dificuldades desnecessárias. Se me permite a banca, "dificuldades" não é a palavra apropriada.
Pedia-se ao candidato que reescrevesse a frase, mudando apenas a ordem das palavras. Não é difícil, é? Vamos ver como fica: "Ao chegar ao ancoradouro, Alzira Alves Filha, que estava acompanhada de adeptos do Movimento Evangélico Unido, recebeu um colar indígena, feito de escamas de pirarucu e frutos do mar".
No texto original não faltam problemas. O principal deles talvez seja a grande distância que há entre o pronome relativo "que" e o termo por ele recuperado ("Alzira Alves Filha"). Esse "ruído" é agravado pela presença (entre "Alzira Alves Filha" e o pronome relativo) de inúmeros termos que poderiam ser recuperados por esse "que" ("colar", "escamas", "pirarucu", "frutos", "mar" etc.).
Na correção, esse problema é eliminado (o "que" vem logo depois de "Alzira Alves Filha"), mas se cria outro (menor): a distância entre "Alzira" e "recebeu". Não é à toa que alguém já disse que escrever é obra sem fim. É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.
E-mail - inculta@uol.com.br



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