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PASQUALE CIPRO NETO
Complicações desnecessárias
Leia este subtítulo jornalístico, publicado há dez
dias: "Contribuintes têm gasto no
cartão incompatível com a renda;
10 mil são suspeitos de omitir informações sobre imóveis".
Se me permite, caro leitor, sou
capaz de apostar que, num primeiro momento, você entendeu
"gasto" como particípio de "gastar" e não como substantivo (sinônimo de "despesa"). O resultado disso provavelmente foi a necessidade de reler o texto.
O que se quis dizer certamente
ficaria mais claro com o deslocamento (e isolamento com vírgulas) da expressão "no cartão"
("Contribuintes têm, no cartão,
gasto incompatível com a renda")
ou com a pluralização do substantivo "gasto" ("Contribuintes
têm, no cartão, gastos incompatíveis com a renda"). Seria possível
também (e talvez melhor) partir
para outras estruturas, como "No
cartão, gasto de contribuintes é
incompatível com a renda").
Vamos tomar o título original
para mostrar como evitar certos
"ruídos" na hora de escrever.
Uma das primeiras providências
é evitar que se possam formar falsos pares. Em "Contribuintes têm
gasto no cartão incompatível...",
por exemplo, a sequência "têm
gasto" pode nos levar ao par "verbo "ter" + particípio", já que essa
combinação é bem mais comum
na língua do que a formada pelo
verbo "ter" e o substantivo "gasto" (sinônimo de "despesa").
Nesse caso, é maior a incidência
do substantivo no plural ("Eles
têm gastos muito altos/despesas
muito altas com a manutenção
da frota", por exemplo).
Outro falso par é "cartão incompatível". Em "Contribuintes
têm gasto no cartão incompatível...", o adjetivo "incompatível"
não se refere ao substantivo "cartão", ao qual é contíguo, mas a
"gasto", do qual está distante.
Como se vê, apesar de pequena,
a frase exige malabarismos de
quem a lê. Com todos esses "ruídos", o resultado não pode mesmo ser dos melhores.
Nossa conversa me fez lembrar
um trecho jornalístico presente
numa questão da Unicamp: "Ao
chegar ao ancoradouro, recebeu
Alzira Alves Filha um colar indígena, feito de escamas de pirarucu e frutos do mar, que estava
acompanhada de um grupo de
adeptos do Movimento Evangélico Unido". Acredite: o texto é real.
A banca dizia que a organização
sintática dada a certos textos cria
dificuldades desnecessárias. Se
me permite a banca, "dificuldades" não é a palavra apropriada.
Pedia-se ao candidato que reescrevesse a frase, mudando apenas
a ordem das palavras. Não é difícil, é? Vamos ver como fica: "Ao
chegar ao ancoradouro, Alzira
Alves Filha, que estava acompanhada de adeptos do Movimento
Evangélico Unido, recebeu um
colar indígena, feito de escamas
de pirarucu e frutos do mar".
No texto original não faltam
problemas. O principal deles talvez seja a grande distância que há
entre o pronome relativo "que" e
o termo por ele recuperado ("Alzira Alves Filha"). Esse "ruído" é
agravado pela presença (entre
"Alzira Alves Filha" e o pronome
relativo) de inúmeros termos que
poderiam ser recuperados por esse "que" ("colar", "escamas", "pirarucu", "frutos", "mar" etc.).
Na correção, esse problema é
eliminado (o "que" vem logo depois de "Alzira Alves Filha"), mas
se cria outro (menor): a distância
entre "Alzira" e "recebeu". Não é
à toa que alguém já disse que escrever é obra sem fim. É isso.
Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.
E-mail - inculta@uol.com.br
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