|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
GILBERTO DIMENSTEIN
Os foliões de Deus
GILBERTO DIMENSTEIN
COLUNISTA DA FOLHA
O padre Rosalvino Moreno
estava com uma sóbria bata
branca, dessas usadas por antigos professores. À sua volta, mulheres seminuas -algumas delas quase totalmente nuas-, travestis exuberantemente fantasiados, em meio a milhares de foliões sacudindo ao som da bateria de escola de samba. Rosalvino parecia à vontade e mostrava-se indiferente à paisagem humana. Mas se entregava à música,
cantando e levantando os braços, em cima de um carro alegórico da Unidos do Peruche, sábado à noite, no sambódromo.
Naquele clima descontraído e
irreverente, perguntaram-lhe
como se sentia enfiado naquele
"desfile de tentações". Bem-humorado, respondeu: "Deus não
me deixa ver".
O Carnaval faz parte da vida de
Rosalvino -aliás, encontrou
nessa festa a solução de alguns de
seus problemas. Há 16 anos, ele
desenvolve projetos educacionais para crianças e jovens na zona leste. Não sabia como atingir
um grupo de crianças e jovens
mais arredios e violentos, alguns
integrando gangues. Não queriam saber de estudar e não tinham interesse na maioria das
atividades educativas oferecidas.
Surgiu então a idéia de criar a Escola de Samba Dom Bosco. "A
isca funcionou", orgulha-se.
Com o tempo, o grupo foi crescendo, conseguiu juntar centenas de foliões e passaram a desfilar no sambódromo em categorias inferiores. Era o suficiente
para mobilizar crianças e jovens,
entregando-se disciplinadamente aos ensaios. "Foi possível, a
partir disso, trabalhar com eles o
prazer do aprendizado, a harmonia, a importância do trabalho
em grupo, da cooperação e da
disciplina."
A idéia não era exatamente
apreciada por seus superiores
hierárquicos da Igreja Católica.
Chegaram inclusive a recomendar que deixasse os projetos
carnavalescos, cujos ritmos
e vestimentas não se coadunariam com os princípios religiosos. Diplomaticamente, Rosalvino mostrou como aquela experiência tinha, para aqueles jovens, uma espécie de dom divino. Não recebeu a aprovação,
mas, pelo menos, ninguém mais
o incomodou.
Devido à sua atuação na zona
leste, Rosalvino foi convidado a
sair, no sábado passado, num
dos carros da Unidos do Peruche, cujo tema era o "Encontro
com a comunidade". Ele acenava
a muitos dos passistas a seu lado,
muitos dos quais tinham sido
seus alunos.
Um desses ex-alunos é a madrinha da bateria da Peruche,
que, trajada "a rigor", naquele
sábado, veio, suada e sorrindo,
abraçar Rosalvino. No dia seguinte, ela desfilaria na Dom
Bosco. Mas prometia adaptar-se
às circunstâncias. "Lá, não vou
pelada", brincou.
Texto Anterior: Japonês aprendeu a sambar em vídeo Próximo Texto: A cidade é sua: Morador reclama de barulho de bar na zona leste de São Paulo Índice
|