São Paulo, quinta-feira, 01 de abril de 2004

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PASQUALE CIPRO NETO

"Chame o ladrão!"

"A corda , amor / Eu tive um pesadelo agora / Sonhei que tinha gente lá fora / Batendo no portão, que aflição / Era a dura, numa muito escura viatura / Minha nossa santa criatura / Chame, chame, chame lá / Chame, chame o ladrão, chame o ladrão." Reconheceu? São os versos iniciais de uma obra-prima chamada "Acorda, Amor", de Leonel Paiva e Julinho da Adelaide, pseudônimos que Chico Buarque usou em 1974 para driblar a censura da ditadura militar.
Pois bem, estamos num 1º de abril, mas este texto foi escrito no dia em que se "comemorou" o quadragésimo aniversário de uma das maiores tragédias da história do Brasil, o golpe de 64, que mergulhou o país na escuridão da ignorância, imanente a todas -TODAS!- as ditaduras.
Já sei, já sei, caro leitor, o assunto desta coluna é a língua, a construção e a compreensão dos textos -não é preciso lembrar-me disso-, mas, se me permite, afirmo que o nefando golpe de 64 tem relação com o meu assunto, sim.
Explico: o golpe e a ditadura já fazem parte das aulas de história do Brasil; dessas aulas (e das de português) fazem parte os textos que retratam esse período. Está nos "Parâmetros Curriculares Nacionais" a obrigação (da escola) de informar e formar, de trabalhar com a inter e a multidisciplinaridade, o que exige, por exemplo, que se analisem letras como a de "Acorda, Amor" nas aulas de português e/ou história.
Muitos vestibulares importantes privilegiam a intertextualidade, em provas que abordam textos de natureza diversa, mas de temática semelhante. As bancas podem, por exemplo, pedir ao candidato que escreva uma redação sobre o tema democracia/ditadura, a partir de uma pequena coleção de textos, da qual pode fazer parte "Acorda, Amor".
Posto isso, vamos à letra de Chico, que, na contramão do que vimos na semana passada (sobre os truques da "enrolação oficial"), "enrola" os então donos da marmelada tupiniquim. Valendo-se de fina ironia (e do passe livre obtido com os pseudônimos), Chico inverte a ordem natural das coisas ao pedir à mulher que "chame o ladrão, chame o ladrão".
O jogo é claro: o normal é que se chame a polícia quando surge o ladrão; na letra de Chico, surge a polícia (a "muito escura viatura", que representa os agentes da ditadura) e chama-se o ladrão, mais confiável do que o aparelho do Estado (se me permite a maledicência, caro leitor, não progredimos muito nesse campo, não?).
Vamos a outra parte da letra de Chico (a mais doída, talvez): "Se eu demorar uns meses, convém, às vezes, você sofrer / Mas depois de um ano eu não vindo / Ponha a roupa de domingo e pode me esquecer". Captou a mensagem, amado leitor? Foi esse o destino de muitos brasileiros, o de sumir. Intencionalmente ambígua, a "roupa de domingo" simboliza a ida à igreja (para rezar pela alma do "suicidado") e o pôr-se bela para o encontro do novo amor ("e pode me esquecer").
Como se vê, o maior mérito desse texto (literário, poético) talvez seja o de não ser panfletário, de não dizer, mas de dar a entender. Em tempos de explicitação de tudo (vejam-se certos programas de televisão), de metáforas (muitas delas oficiais) pobres e de outras mazelas, um pouco de exercício de imaginação (aliado ao conhecimento da nossa história) não faz mal a ninguém, certo? É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras
E-mail - inculta@uol.com.br



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