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PASQUALE CIPRO NETO
"Chame o ladrão!"
"A corda , amor / Eu tive
um pesadelo agora / Sonhei que tinha gente lá fora / Batendo no portão, que aflição / Era
a dura, numa muito escura viatura / Minha nossa santa criatura /
Chame, chame, chame lá / Chame, chame o ladrão, chame o ladrão." Reconheceu? São os versos
iniciais de uma obra-prima chamada "Acorda, Amor", de Leonel
Paiva e Julinho da Adelaide,
pseudônimos que Chico Buarque
usou em 1974 para driblar a censura da ditadura militar.
Pois bem, estamos num 1º de
abril, mas este texto foi escrito no
dia em que se "comemorou" o
quadragésimo aniversário de
uma das maiores tragédias da
história do Brasil, o golpe de 64,
que mergulhou o país na escuridão da ignorância, imanente a
todas -TODAS!- as ditaduras.
Já sei, já sei, caro leitor, o assunto desta coluna é a língua, a construção e a compreensão dos textos
-não é preciso lembrar-me disso-, mas, se me permite, afirmo
que o nefando golpe de 64 tem relação com o meu assunto, sim.
Explico: o golpe e a ditadura já
fazem parte das aulas de história
do Brasil; dessas aulas (e das de
português) fazem parte os textos
que retratam esse período. Está
nos "Parâmetros Curriculares
Nacionais" a obrigação (da escola) de informar e formar, de trabalhar com a inter e a multidisciplinaridade, o que exige, por
exemplo, que se analisem letras
como a de "Acorda, Amor" nas
aulas de português e/ou história.
Muitos vestibulares importantes privilegiam a intertextualidade, em provas que abordam textos de natureza diversa, mas de
temática semelhante. As bancas
podem, por exemplo, pedir ao
candidato que escreva uma redação sobre o tema democracia/ditadura, a partir de uma pequena
coleção de textos, da qual pode fazer parte "Acorda, Amor".
Posto isso, vamos à letra de Chico, que, na contramão do que vimos na semana passada (sobre os
truques da "enrolação oficial"),
"enrola" os então donos da marmelada tupiniquim. Valendo-se
de fina ironia (e do passe livre obtido com os pseudônimos), Chico
inverte a ordem natural das coisas ao pedir à mulher que "chame
o ladrão, chame o ladrão".
O jogo é claro: o normal é que se
chame a polícia quando surge o
ladrão; na letra de Chico, surge a
polícia (a "muito escura viatura",
que representa os agentes da ditadura) e chama-se o ladrão, mais
confiável do que o aparelho do
Estado (se me permite a maledicência, caro leitor, não progredimos muito nesse campo, não?).
Vamos a outra parte da letra de
Chico (a mais doída, talvez): "Se
eu demorar uns meses, convém,
às vezes, você sofrer / Mas depois
de um ano eu não vindo / Ponha
a roupa de domingo e pode me esquecer". Captou a mensagem,
amado leitor? Foi esse o destino
de muitos brasileiros, o de sumir.
Intencionalmente ambígua, a
"roupa de domingo" simboliza a
ida à igreja (para rezar pela alma
do "suicidado") e o pôr-se bela
para o encontro do novo amor ("e
pode me esquecer").
Como se vê, o maior mérito desse texto (literário, poético) talvez
seja o de não ser panfletário, de
não dizer, mas de dar a entender.
Em tempos de explicitação de tudo (vejam-se certos programas de
televisão), de metáforas (muitas
delas oficiais) pobres e de outras
mazelas, um pouco de exercício
de imaginação (aliado ao conhecimento da nossa história) não
faz mal a ninguém, certo? É isso.
Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras
E-mail - inculta@uol.com.br
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