|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
RUBEM ALVES
"Não sejas demasiado justo"
Essa encruzilhada simples entre o certo e o errado, entre o lado da vida e o da morte, só acontece nos textos de lógica
ERA UM DEBATE sobre o aborto
na TV. A questão não era "ser
a favor"ou "contra o aborto".
O que se buscava eram diretrizes éticas para se pensar sobre o assunto.
Será que existe um princípio ético
absoluto que proíba todos os tipos
de aborto? Ou será que o aborto não
pode ser pensado "em geral", tendo
de ser pensado "caso a caso"? Por
exemplo: um feto sem cérebro. É
certo que ele morrerá ao nascer. Esse não seria um caso para se permitir o aborto, para poupar a mulher
do sofrimento de gerar uma coisa
morta por nove meses?
Um dos debatedores era um teólogo católico. Como se sabe, a ética católica é a ética dos absolutos. Ela não
discrimina abortos. Todos os abortos são iguais. Todos os abortos são
assassinatos.
Terminando o debate, o teólogo
concluiu com esta afirmação: "Nós
ficamos com a vida!"
O mais contundente nessa afirmação está não naquilo que ela diz
claramente, mas naquilo que ela diz
sem dizer: "Nós ficamos com a vida.
Os outros, que não concordam conosco, ficam com a morte..."
Mas eu não concordo com a posição teológica da igreja -sou favorável, por razões de amor, ao aborto de
um feto sem cérebro- e sustento
que o princípio ético supremo é a reverência pela vida.
Lembrei-me do filme a "Escolha
de Sofia". Sofia, mãe com seus dois
filhos, numa estação ferroviária da
Alemanha nazista. Um trem aguardava aqueles que nele seriam embarcados para a morte nas câmaras
de gás. O guarda que fazia a separação olha para Sofia e lhe diz: "Apenas
um filho irá com você. O outro embarcará nesse trem..." E apontou para o trem da morte.
Já me imaginei vivendo essa situação: meus dois filhos -como os
amo-, eu os seguro pela mão, seus
olhos nos meus. A alternativa à minha frente é: ou morre um ou morrem os dois. Tenho de tomar a decisão. Se eu me recusasse a decidir pela morte de um, alegando que eu fico
com a vida, os dois seriam embarcados no trem da morte... Qual deles
escolherei para morrer? Acho que a
ética do teólogo católico não ajudaria Sofia.
Você é médico, diretor de uma
UTI que, naquele momento, está lotada, todos os leitos tomados, todos
os recursos esgotados. Chega um
acidentado grave que deve ser socorrido imediatamente para não
morrer. Para aceitá-lo, um paciente
deverá ser desligado das máquinas
que o mantém vivo. Qual seria a sua
decisão? Qual princípio ético o ajudaria na sua decisão? Qualquer que
fosse a sua decisão, por causa dela
uma pessoa morreria.
Lembro-me do incêndio do edifício Joelma. Na janela de um andar
alto, via-se uma pessoa presa entre
as chamas que se aproximavam e o
vazio à sua frente. Em poucos minutos as chamas a transformariam numa fogueira. Para ela, o que significa
dizer "eu fico com a vida"? Ela ficou
com a vida: lançou-se para a morte.
Ah! Como seria simples se as situações da vida pudessem ser assim
colocadas com tanta simplicidade:
de um lado a vida e do outro a morte.
Se assim fosse, seria fácil optar pela
vida. Mas essa encruzilhada simples
entre o certo e o errado só acontece
nos textos de lógica. O escritor sagrado tinha consciência das armadilhas da justiça em excesso e escreveu: "Não sejas demasiado justo
porque te destruirás a ti mesmo..."
Texto Anterior: Mãe e avô de garota defendem pai e madrasta Próximo Texto: Consumo: Advogado se queixa que Claro enviou cobrança indevida Índice
|