São Paulo, Domingo, 01 de Agosto de 1999
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SAÚDE
Santa Casa deu prazo ao instituto e pode entrar na Justiça para retomar terreno ocupado há 70 anos
Despejo ameaça Instituto do Câncer

da Reportagem Local

O início do relacionamento foi em 1924. O casamento definitivo ocorreu em 1929. Passados 70 anos, podem se separar. Não é a primeira vez que se desentendem. Mas agora a coisa parece ser mais séria.
A Santa Casa de Misericórdia de São Paulo quer se livrar do convívio com o Instituto do Câncer Arnaldo Vieira de Carvalho. No último mês de junho, enviou carta dando ao instituto um prazo de 30 dias para devolver o terreno que ocupa há sete décadas, na rua Dr. Cesário Motta Júnior, na região central de São Paulo.
O prazo venceu na semana passada. Como o Instituto do Câncer não se mexeu, a Santa Casa já prepara uma ação judicial.
Os prédios das duas instituições são praticamente geminados. O da Santa Casa atravessa todo um quarteirão. O do instituto ocupa uma pequena porção do terreno.
Se quisessem conversar pessoalmente, o provedor da Santa Casa, Waldemar de Carvalho Pinto Filho, e o presidente do conselho diretor do Instituto do Câncer, Roberto Amparo Pestana Câmara, precisariam apenas vencer uma distância de escassos 37 passos.
Mas a atmosfera entre ambos está de tal modo turva que parece não haver ambiente para o diálogo. Comunicam-se só por escrito. E por meio dos respectivos advogados.
Há pelo menos cinco centenas de razões para que os dois marquem um encontro. O Instituto do Câncer atende diariamente uma média de 500 doentes; 85% seriam pessoas pobres, bancadas pelo SUS.
Pobres como Laerte Peixe, 47. Sem dinheiro e sem poder trabalhar, ele está às voltas com um tumor na mandíbula que lhe consome a pele da face e "um restinho de esperança".
Na última quinta-feira, deitado num dos 65 leitos do Instituto do Câncer, Peixe se preparava para sua terceira cirurgia. Ele tenta reaver, com enxertos de pele retirados de outras partes do corpo, o rosto que o câncer lhe tomou.
"Acho muito errado", disse, a respeito do litígio que sacode as relações da Santa Casa com o Instituto do Câncer.
"O Instituto terá de se instalar em outro lugar", diz Kalil Rocha Abdala, advogado da Santa Casa. E quanto aos pacientes? "Podemos receber uma parte deles."
Fausto Farah Baracat, diretor clínico do Instituto do Câncer há 14 anos, revolta-se: "Somos tocados a números, registros e idiossincrasias pessoais. Não há mais humanidade nas pessoas. É óbvio que não temos para onde ir. E não se muda um hospital de 70 anos assim, do dia para a noite".
O relacionamento entre as duas instituições azedou depois que o Instituto do Câncer resolveu fazer, no início do ano, uma obra para ampliar sua cozinha e sua lavanderia e para acomodar mais 20 leitos.
A administração da Santa Casa obteve da Justiça, em fevereiro, uma liminar (decisão provisória) embargando a obra. Disse que o Instituto do Câncer precisaria ter solicitado, por escrito, autorização para realizar a reforma. Anexou documentos que demonstram que, no passado, o instituto chegou a submeter à Santa Casa até solicitação para instalar uma reles torneira.
Alegou-se, de resto, que o tapume da obra dificultava: 1) o acesso de pacientes ao hemocentro da Santa Casa; 2) o trânsito de cadeiras de rodas; 3) a manutenção dos geradores do hospital.
O Instituto do Câncer diz em sua defesa que já mudou a posição do tapume. E, mais importante: informa que a reforma foi, sim, comunicada à Santa Casa. Houve inclusive uma reunião em que os engenheiros da instituição aprovaram as plantas da reforma.
Por trás da divergência está, na verdade, a disputa pelo naco de terreno (2.646 m2) sobre o qual foi erguido o prédio do Instituto do Câncer. A área foi cedida pela Santa Casa, em 1924. Construído com doações, o instituto foi inaugurado em 1929.
O dinheiro que financiaria as obras de ampliação do Instituto do Câncer (R$ 1,7 milhão) está parado. Trata-se de dinheiro público, do Ministério da Saúde. O repasse foi feito por intermédio do governo de São Paulo.
O curioso é que a verba foi liberada pelo secretário estadual José da Silva Guedes (Saúde), um médico que possui vinculação histórica com a Santa Casa.
Alheios à contenda que se trava na cúpula, os funcionários das duas instituições mantêm uma rotina de colaboração mútua. Maria José da Silva, chefe da enfermagem do Instituto do Câncer, mantém uma política de boa vizinhança com Maria Antônia, sua colega da Santa Casa.
Um exemplo: graças à objetividade das duas Marias, os filtros dos aparelhos de hemodiálise do Instituto do Câncer são higienizados nos esterilizadores da Santa Casa.
A roupa de cama do Instituto do Câncer é lavada na lavanderia da Santa Casa, ao custo de R$ 1,00 por quilo.
A anestesista Sandra Cordeiro tem dupla militância: no Instituto do Câncer, integra o grupo de dor, composto para tentar aliviar o sofrimento dos pacientes; na Santa Casa, trabalha na equipe de anestesistas.
O médico José Rodrigues Pereira, oncopneumologista, conta que a colaboração entre as equipes médicas das duas instituições também é tradicional. "É comum eles enviarem pacientes de câncer para cá e nós mandarmos outros tipos de doentes para lá."
Rodrigues Pereira não consegue entender a lógica da disputa que, no momento, opõe o instituto à Santa Casa. Acha incrível que duas instituições com tantos serviços prestados à sociedade tenham que recorrer aos tribunais para resolver suas diferenças.



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