São Paulo, quinta-feira, 01 de outubro de 2009

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

PASQUALE CIPRO NETO

Descrimina(liza)r o usuário de drogas


O pobre usuário da língua muitas vezes fica perdido no meio do tiroteio em que se metem alguns dicionários

O EX-PRESIDENTE Fernando Henrique Cardoso está seriamente empenhado em promover alterações no atual sistema de combate às drogas. O sociólogo diz que, como é mais que evidente que são pífios os resultados obtidos pelo modelo em vigor, é preciso mudar. Salvo engano, a principal alteração proposta por FHC é a descriminalização (ou "descriminação"?) do usuário das drogas, o que lhe tem rendido algumas críticas, vindas, sobretudo, dos que não sabem ler ou interpretar o que se escreve ou diz.
Refiro-me à mais do que tosca "interpretação" de que, ao defender a descriminação (ou "descriminalização"?) do viciado, FHC defende ou prega o consumo de drogas. Haja ignorância! Por que me pus nessa discussão? Certamente não foi para defender FHC ou quem quer que seja.
Foi para tentar mostrar que não se combate um argumento com a estúpida subversão ou deturpação dele.
Se não se acredita que a descriminalização (ou "descriminação"?) do usuário resolva algo, combata-se essa tese, mas não se diga que ela propõe o que não propõe. Essa conversa lembra a questão da defesa dos direitos humanos, que, para algumas pobres almas, é pura e simplesmente a defesa do direito de delinquir.
Bem, a esta altura devo lembrar que uma das causas dos altos índices de reprovação em concursos públicos (disputa por vaga nas universidades ou no funcionalismo público etc.) é a leitura torta, o que inclui inferências absurdas de passagens de textos ou enunciados de questões.
Posto isso, aproveito o gancho dado pela proposta de FHC para trocar duas palavras sobre os pares "descriminalização/descriminação" e "descriminalizar/descriminar". Se o caro leitor prestar atenção nos títulos jornalísticos publicados quando se trata de algo do gênero, verá que o mesmo jornal ora usa uma forma, ora usa outra. Manda a ditadura do espaço. Se "descriminação" der "branco", ou seja, se a linha não for totalmente preenchida, opta-se por "descriminalização"; se ocorrer o contrário, elege-se "descriminação".
O fato é que o uso impõe o registro das duas formas, embora nem sempre isso tenha sido fato líquido e certo nos dicionários. No meu velho Caldas Aulete (de 1964), não há registro de "descriminalizar", nem de "descriminalização", o que se repete em edições antigas do "Aurélio".
Um dos fatores que certamente devem ter dado força ao uso de "descriminalizar" é a incômoda semelhança fonética entre "descriminar" e "discriminar". Essa observação, por sinal, é abonada pela edição de 2001 do "Houaiss", que em "descriminalizar" diz que "essa forma tem sido proposta para substituir descriminar, em virtude da paronímia desta com discriminar (...); não vem, contudo, registrada no V. O.".
O "V. O." em questão é o "Vocabulário Ortográfico", certamente de edição anterior à de 2001 do "Houaiss". É bom que se diga que, em sua última edição (de 2009), o "Vocabulário Ortográfico" (felizmente) traz as formas "descriminalizar" e "descriminalização". O fato é que o pobre usuário da língua muitas vezes fica perdido no meio do tiroteio em que se metem alguns dicionários -às vezes, o tiroteio é "autofágico", visto que um mesmo dicionário traz "criminalizar", por exemplo, mas não traz "descriminalizar". Francamente...
Outra particularidade interessante é a do tratamento que cada dicionário dá aos integrantes de duplas como as que citamos. O "Aurélio", por exemplo, privilegia "descriminar", que é a forma mais velha (quem procura "descriminalizar" é remetido a "descriminar"); o "Houaiss" faz o contrário... Tenha paciência, caro leitor. E saiba que todas são válidas. É isso.

inculta@uol.com.br


Texto Anterior: Outro lado: Empresas contestam pesquisa
Próximo Texto: Trânsito: CET bloqueia avenida na Vila Guilherme para corrida de rua
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.