São Paulo, terça-feira, 01 de dezembro de 2009

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CECILIA GIANETTI

Nostalgia de papel


Ainda entro em papelaria pra escolher lapiseiras, mas babo por um netbook pretinho pra escrever enquanto passeio

TENHO mania de bloco, caderno e caderneta, não é de hoje. Boa parte do que publico na web, em jornal ou em livro nasce antes de papel e caneta. Mas não descarto o desejo por um netbook -aquele "escrevedor" pequeno, magro, quase um bloquinho digital, porém, mais do que mera agenda- e o de experimentar um leitor eletrônico como o Kindle.
Quando troquei a máquina de escrever por um micro, em 1997, pingava meus pensamentos de post em post -minutos roubados das seis horas de estágio que deveria cumprir, embora as tarefas passadas aos estagiários não tomassem mais do que 15 minutos diários.
Em seguida, no primeiro emprego, conseguia escrever por horas o que bem quisesse e publicar na internet, sem chamar a atenção: empregado digitando significava, aos olhos leigos, empregado trabalhando. Isso durou pouco, apenas pela época em que só meia dúzia de pessoas tinham blog, e o chefe desconhecia a existência do ICQ (o Gtalk/Adium de priscas eras) e de muitos outros demônios contraproducentes da web, que então não passavam de alucinações descritas em livros de ficção científica gringos.
Depois, no segundo emprego mais sério a que me submeti, a coisa mudou inteiramente de figura. Aí os blogs, finalmente, já haviam sido detectados como gatilhos para o distúrbio de deficit de atenção, o exercício da originalidade ("Que Deus livre certos setores do mercado disso!", eles rezam em seus escritórios refrigerados) ou o da vagabundagem -facilmente perceptíveis até mesmo por patrões procariontes do reino monera.
Ficou então muito difícil fazer o que eu não era paga pra fazer nas horas em que eu devia fazer o que me pagavam pouco pra fazer: escrever minha "produção independente" durante o expediente da empresa.
Tinha que fazê-lo quando chegasse em casa. O que acarretou o princípio de crises criativas, um cansaço ranheta só de olhar pra máquina. Passando cada vez mais tempo atochada à do escritório, durante o dia, batia um acanhamento depois -certa ojeriza a sentar-me outra vez à tela, já que passara o dia inteiro frente a uma igualzinha, no trampo. Se ligava o micro em casa, parecia-me que o expediente não havia terminado. Badernava o ambiente pra diferenciá-lo do escritório do dia a dia, trocava saia e blusa sóbrias por uma camiseta largona de dormir. Mas permanecia a incômoda sensação de que não havia tomado o metrô para a estação Arcoverde, não entrara na minha ruazinha do Lido carioca nem no prédio ao lado da Igreja Universal (seus hinos religiosos e sessões de exorcismo eram a única fonte de gritaria no local, junto com as eventuais brigas de travestis na esquina da Nossa Senhora de Copacabana). Era como se, a qualquer hora da madrugada, pudesse invadir meu quarto a moça com o café de máquina -"açúcar ou adoçante?"- e algum disquete (!) repleto das tristezas decretadas pelos nossos superiores lá do trampo.
E hoje é senso quase comum que a internet é aliada da escrita e da leitura. Ainda entro em papelaria pra escolher lapiseiras e cia., ao passo que também babo por um netbook pretinho pra passear escrevendo ou escrever enquanto passeio; mesmo colecionando cadernos e livros antigos adquiridos em sebos, quero um e-reader. Não são coisas incompatíveis. A única coisa que não cabe na equação da nossa chamada pós-pós-"mudernidade" são os polemistas que ainda hoje creem no atrasado postulado da web-monstro que vai "acabar com o livro".

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