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PASQUALE CIPRO NETO
"Para ser grande, sê inteiro"
Na semana passada, analisei uma questão do último
vestibular da Fuvest em que se
exigia o conhecimento do modo
imperativo culto. Deixei para hoje o comentário sobre esta frase:
"Cura-te a ti mesmo e seja feliz!".
Conjugadas no imperativo afirmativo, as duas formas verbais da
mensagem pertencem a pessoas
gramaticais diferentes. A primeira ("Cura-te") é da segunda do
singular ("tu"), formada com a
supressão do "s" final da segunda
do singular do presente do indicativo ("curo-me, curas-te..."). A segunda forma verbal ("seja") é da
terceira do singular. Essa flexão
vem diretamente do presente do
subjuntivo ("que eu seja, que tu
sejas, que ele/você seja...").
Pois bem, "de acordo com a
norma escrita culta" (a expressão
está entre aspas porque foi transcrita , "ipsis litteris", do enunciado da Fuvest), para que se use "seja", da terceira pessoa, deve-se
usar "cure-se", também da terceira pessoa. O resultado seria este:
"Cure-se a si mesmo e seja feliz!".
E como ficaria a frase se empregássemos "Cura-te a ti mesmo"?
Teríamos de conjugar o verbo
"ser" na segunda do singular.
Pois é aí que a roda pega. O verbo
"ser" é o único (repito: o único)
que não segue integralmente o
sistema de conjugação do imperativo afirmativo culto. O desvio
de rota se dá apenas nas duas segundas pessoas ("tu" e "vós"), que
têm formas independentes: "sê"
("tu"), "sede" (vós"). Na escrita
culta, teríamos, então, esta frase:
"Cura-te a ti mesmo e sê feliz!".
Talvez alguém diga que, por
não fazer parte da língua usada
no nosso dia-a-dia, a forma imperativa "sê" não deve ser exigida
numa questão de vestibular ou,
pior ainda, que a escola não deve
ensinar essas coisas, que o ensino
de língua deve limitar-se ao que é
"vivo" etc. Obscurantismo puro!
O mínimo que a escola deve fazer é prover os cidadãos brasileiros, lusoparlantes, dos instrumentos necessários para dominar a
maior quantidade possível de variedades da língua. Deve torná-los aptos, por exemplo, a ler Oswald de Andrade ou Fernando
Pessoa. A propósito, são de Pessoa
(Ricardo Reis) estes memoráveis
versos: "Para ser grande, sê inteiro: nada / Teu exagera ou exclui. /
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és / No mínimo que fazes.".
Em "Sê inteiro" e "Sê todo em
cada coisa", temos a forma clássica da segunda do singular do imperativo afirmativo do verbo
"ser". Se o texto passasse para a
terceira pessoa, teríamos isto:
"Para ser grande, seja inteiro: nada / Seu exagere ou exclua. / Seja
todo em cada coisa. Ponha quanto (você) é no mínimo que faz.".
E são de Oswald de Andrade estes versos, do antológico poema
"Verbo Crackar" (cujo título faz
referência ao "crack" da Bolsa de
Valores de Nova York, ocorrido
em 1929): "Eu empobreço de repente / Tu enriqueces por minha
causa / (...) / Nós entramos em
concordata (...) Sê pirata / Sede
trouxas (...) Oxalá eu tivesse sabido que esse verbo era irregular".
Em "Sê pirata / Sede trouxas",
Oswald usa as duas segundas pessoas do imperativo afirmativo do
verbo "ser". Escritos na terceira
pessoa, esses versos passariam a
"Seja pirata / Sejam trouxas".
Ponto para a Fuvest. Uma boa
prova de língua não pode deixar
de avaliar o conhecimento das
modalidades cultas. É isso.
Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.
E-mail - inculta@uol.com.br
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