São Paulo, quinta-feira, 02 de janeiro de 2003

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PASQUALE CIPRO NETO

"Para ser grande, sê inteiro"

Na semana passada, analisei uma questão do último vestibular da Fuvest em que se exigia o conhecimento do modo imperativo culto. Deixei para hoje o comentário sobre esta frase: "Cura-te a ti mesmo e seja feliz!".
Conjugadas no imperativo afirmativo, as duas formas verbais da mensagem pertencem a pessoas gramaticais diferentes. A primeira ("Cura-te") é da segunda do singular ("tu"), formada com a supressão do "s" final da segunda do singular do presente do indicativo ("curo-me, curas-te..."). A segunda forma verbal ("seja") é da terceira do singular. Essa flexão vem diretamente do presente do subjuntivo ("que eu seja, que tu sejas, que ele/você seja...").
Pois bem, "de acordo com a norma escrita culta" (a expressão está entre aspas porque foi transcrita , "ipsis litteris", do enunciado da Fuvest), para que se use "seja", da terceira pessoa, deve-se usar "cure-se", também da terceira pessoa. O resultado seria este: "Cure-se a si mesmo e seja feliz!".
E como ficaria a frase se empregássemos "Cura-te a ti mesmo"? Teríamos de conjugar o verbo "ser" na segunda do singular. Pois é aí que a roda pega. O verbo "ser" é o único (repito: o único) que não segue integralmente o sistema de conjugação do imperativo afirmativo culto. O desvio de rota se dá apenas nas duas segundas pessoas ("tu" e "vós"), que têm formas independentes: "sê" ("tu"), "sede" (vós"). Na escrita culta, teríamos, então, esta frase: "Cura-te a ti mesmo e sê feliz!".
Talvez alguém diga que, por não fazer parte da língua usada no nosso dia-a-dia, a forma imperativa "sê" não deve ser exigida numa questão de vestibular ou, pior ainda, que a escola não deve ensinar essas coisas, que o ensino de língua deve limitar-se ao que é "vivo" etc. Obscurantismo puro!
O mínimo que a escola deve fazer é prover os cidadãos brasileiros, lusoparlantes, dos instrumentos necessários para dominar a maior quantidade possível de variedades da língua. Deve torná-los aptos, por exemplo, a ler Oswald de Andrade ou Fernando Pessoa. A propósito, são de Pessoa (Ricardo Reis) estes memoráveis versos: "Para ser grande, sê inteiro: nada / Teu exagera ou exclui. / Sê todo em cada coisa. Põe quanto és / No mínimo que fazes.".
Em "Sê inteiro" e "Sê todo em cada coisa", temos a forma clássica da segunda do singular do imperativo afirmativo do verbo "ser". Se o texto passasse para a terceira pessoa, teríamos isto: "Para ser grande, seja inteiro: nada / Seu exagere ou exclua. / Seja todo em cada coisa. Ponha quanto (você) é no mínimo que faz.".
E são de Oswald de Andrade estes versos, do antológico poema "Verbo Crackar" (cujo título faz referência ao "crack" da Bolsa de Valores de Nova York, ocorrido em 1929): "Eu empobreço de repente / Tu enriqueces por minha causa / (...) / Nós entramos em concordata (...) Sê pirata / Sede trouxas (...) Oxalá eu tivesse sabido que esse verbo era irregular".
Em "Sê pirata / Sede trouxas", Oswald usa as duas segundas pessoas do imperativo afirmativo do verbo "ser". Escritos na terceira pessoa, esses versos passariam a "Seja pirata / Sejam trouxas".
Ponto para a Fuvest. Uma boa prova de língua não pode deixar de avaliar o conhecimento das modalidades cultas. É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.

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