São Paulo, terça-feira, 02 de maio de 2000


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Da favelania à filosofia espírito de porco

MARILENE FELINTO
da Equipe de Articulistas

De novo o traficante Marcinho VP (aquele que recebeu uma bolsa do documentarista João Salles para escrever um livro), que é boa pinta, fala direito, tem lá um discurso articulado em defesa dos pobres e prega a "favelania", movimento pela conscientização política dos favelados.
Uma amiga minha olhou bem para a cara dele na TV, falando à CPI do Narcotráfico, e disse: nossa! O cara é bonito, gostoso! Que tempos, que país! Mas traficante manda cortar as mãos de criancinhas, queimar com cigarro. Mata gente inocente, rouba, assalta, estupra, só causa danos à sociedade. Não fosse isso, era o caso de namorar bandido.
O negócio do narcotráfico no Rio de Janeiro é bem essa comédia de horrores. O governador Anthony Garotinho, que parecia disposto a moralizar as polícias e os morros, que se elegeu com apoio de ricos e pobres, intelectuais e analfabetos, é um fiasco típico da política brasileira.
É como se, antes de se eleger, o indivíduo vestisse uma máscara, que tira depois de eleito. O resultado é esse excesso de cabelo de Garotinho, de idéias tronchas e blablablá evangélico de pseudo-pastor que só pensa em ser presidente da República!
Dizem que o principal assessor de Marcinho VP é também um evangélico. São dois lados da mesma moeda, portanto, o governador e o traficante, ambos manobrando a camada mais baixa da sociedade, que é sempre não-individual e, por isso, vítima das manifestações religiosas menos aristocráticas (essas seitas pentecostais) do que as religiões de renúncia, que buscam a meditação e o autoconhecimento.
Claro que ninguém está querendo ser indulgente com a droga ou o narcotráfico, mas é preciso admitir que o discurso do traficante faz sentido, enquanto o do governador não convence ninguém. O jornal carioca "O Dia" publicou no último domingo trechos do depoimento que VP deu a João Salles em 1996.
"Minha luta será sempre pelo povo", diz ele. "Eu queria fazer filosofia, ser professor. Aqui, para não ser morto, você tem de tomar uma atitude. (...). Não existe possibilidade do morro sem tráfico. Ou você é traficante ou escravo do capitalismo. O povo brasileiro é totalmente omisso, escravo. (...). Eu quero conscientizar o meu povo de que não pode continuar assim. Eles têm que brigar."
E VP seria, por fim, melhor professor de filosofia do que Olavo de Carvalho, jornalista-filósofo que escreveu na Folha de 24 de abril uma perigosa aula de moral e cívica sobre o narcotráfico.
Carvalho vê "esquerda" e "direita" em tudo -numa divisão propositalmente simplista-, e acha que a esquerda dos anos 60 é responsável pela apologia das drogas e a disseminação do vício.
Num verdadeiro surto de paranóia fascista, ele junta no mesmo saco o ex-ministro da Justiça José Carlos Dias, Frei Betto, os guerrilheiros de Chiapas, João Moreira Salles e Luiz Eduardo Soares, ex-subsecretário da Segurança do Rio, todos, segundo Carvalho, esquerdistas desonestos, empenhados em combater a "direita" e não o narcotráfico.
O discurso é idêntico ao da extrema-direita francesa, também racista e homofóbica. Carvalho é um espírito de porco da filosofia, escondido sob o epíteto de "expert do desmascaramento da pseudo-argumentação". O morro, sim, é que é o verdadeiro professor.


E-mail mfelinto@uol.com.br



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