São Paulo, quinta-feira, 02 de maio de 2002

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VALE A PENA SABER

PORTUGUÊS

Leitura de poemas requer sensibilidade e referências

THAÍS NICOLETI DE CAMARGO
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Minha terra tem palmeiras,/ Onde canta o sabiá; /As aves, que aqui gorjeiam, não gorjeiam como lá." Os versos do romântico Gonçalves Dias são dos mais conhecidos da literatura brasileira, uma espécie de símbolo do ufanismo, da exaltação patriótica da terra. São talvez os mais retomados por outros poetas -ora para reforçar seu conteúdo de elogio à nação, ora para parodiar a sua ingenuidade. O importante é que esse poema é uma referência na nossa literatura. O Hino Nacional Brasileiro, de Osório Duque Estrada, reaproveita um de seus trechos: "Nossos bosques têm mais vida/ Nossa vida, no teu seio, mais amores".
No modernismo, o poema foi alvo de paródias -imitações de caráter irônico-, entre as quais o poema "Canto de Regresso à Pátria", de Oswald de Andrade: "Minha terra tem palmares/ Onde gorjeia o mar/ Os pássaros daqui/ Não cantam como os de lá ...".
Esse recurso, que permite ao escritor criar uma espécie de diálogo entre textos, chama-se intertextualidade. Seu emprego é freqüente na literatura moderna. Por isso, para ler poesia hoje, é preciso cultivar não só a sensibilidade mas também a cultura geral.
O famoso e não menos polêmico poema de Drummond "No meio do caminho" ("No meio do caminho tinha uma pedra/ tinha uma pedra no meio do caminho/ tinha uma pedra/ no meio do caminho tinha uma pedra") é uma recriação satírica do poema parnasiano "Nel Mezzo del Camin" ("Cheguei. Chegaste.Vinhas fatigada/ E triste, e triste e fatigado eu vinha"). Drummond fez seu texto dialogar de modo irreverente com o de Bilac, usando o mesmo título (mas em português) e estrutura de construção semelhante (organizada em quiasmo, isto é, os termos se repetem em disposição cruzada).
Bem mais tarde, Drummond retomaria o seu próprio texto no poema "Legado", em que a imagem da "pedra no meio do caminho" passa a ser uma metonímia de toda a sua obra: "De tudo quanto foi meu passo caprichoso/ na vida, restará, pois o resto se esfuma,/ uma pedra que havia no meio do caminho". Sem a compreensão da intertextualidade, não se chega à interpretação da "pedra que havia no meio do caminho". O poeta, ao empregar tal recurso, cria uma relação de cumplicidade com o leitor, pois o imagina partilhando de uma mesma experiência ou vivência cultural.


Thaís Nicoleti de Camargo é consultora de língua portuguesa da Folha. Foi responsável pelas aulas de gramática do programa "Vestibulando", da TV Cultura


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