São Paulo, segunda-feira, 02 de julho de 2007 |
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MOACYR SCLIAR A face insólita da violência
QUANDO FICOU sabendo da notícia, a primeira pergunta que lhe ocorreu foi: será que eu poderia fazer a mesma coisa? Depois de pensar muito, concluiu que sim. A pequena penitenciária na qual estava preso ficava muito distante de São Paulo, e o pessoal que cuidava dela não era muito bem informado, não sabia das novidades. Por outro lado, sabão era coisa que ali não faltava. O diretor fazia questão de limpeza, e os presos tinham de lavar suas roupas com freqüência. Finalmente, e este foi um argumento decisivo, desde criança tinha paixão por modelar coisas. Era muito bom nisso, um verdadeiro artista, segundo a sua professora, e não teria a menor dificuldade de confeccionar um revólver de sabão. A tarefa tomou-lhe vários dias, mas, quando finalmente a concluiu, não pôde deixar de sentir-se orgulhoso. O revólver era perfeito, enganaria qualquer um. Confiante, ele foi em frente. Imobilizou seus guardas, intimou-os a que o libertassem. Assustados, os dois conduziram-no pelo pátio em direção ao portão. E aí, o imprevisto. Nervosos, os guardas não conseguiam abrir o portão, cuja fechadura aparentemente estava emperrada. Enquanto tentavam, começou a chover. Chuva torrencial. Ele ficou todo molhado. Ele e o revólver. Que, com a chuva, começou a se desfazer -o sabão, infelizmente, não era da melhor qualidade. Em cinco minutos ele estava desarmado. E foi levado de volta para a cela. Continua lavando suas roupas, como o diretor exige. Mas só pode usar sabão líquido.
ESTE DEPOIMENTO eles não deram, mas poderiam ter dado: "Eram 4h30 da manhã, senhor delegado, quando avistamos aquela mulher, parada no ponto de ônibus. A madrugada nas cidades brasileiras é perigosa, senhor delegado, e o senhor sabe disso. Ficamos assustados. Éramos só cinco, não havia ninguém por perto que pudesse nos ajudar. O que fazer? Alguns queriam fugir, mas eu disse que não: mesmo cercados, deveríamos resistir, mostrar nossa coragem. A mulher bem podia ser uma dessas peritas em lutas marciais, capaz de nos liquidar com meia dúzia de golpes bem dados; mesmo assim, precisaríamos enfrentá-la, até para dar um exemplo à população. Fizemos rapidamente um pacto de honra e fomos ao encontro dela, dispostos a tudo. Vencemos, senhor delegado. Como o senhor sabe, vencemos. Agora nos acusam de mil coisas. Mas é sempre assim, senhor delegado. Os vencedores provocam inveja. Inveja e violência, o senhor sabe disso, são duas pragas da sociedade brasileira. É por isso que este país não vai para a frente." MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha Texto Anterior: Superbactéria reduz eficácia de antibióticos Próximo Texto: Há 50 anos Índice |
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