|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
PASQUALE CIPRO NETO
"Comigo me dasavim"
O verbo "vir" é a base das flexões de "desavir", cujo "ato de" se traduz pelo substantivo "desavença"
EM SEU VESTIBULAR do meio do
ano, a Universidade Mackenzie elaborou duas questões
sobre estes versos do poeta português Francisco de Sá de Miranda:
"Comigo me desavim / Sou posto todo em perigo; / Não posso viver comigo / Nem posso fugir de mim".
Em tempos tão sórdidos como os
que vivemos neste nefando país (sou
brasileeeeeiro, com muuuuuita vergooooonha -que tal o comportamento do público e de certas "glórias" do nosso esporte durante o
Pan?) -tempos em que se têm ou só
se podem ter certezas ("O homem
deve amar a verdade, e não a certeza", dizia meu caro e inesquecível
professor João Paixão Netto)-,
morro de vontade de falar desses e
de outros versos dessa trova do genial Sá de Miranda, cuja segunda estrofe (que a banca não incluiu na
prova) assim termina: "Que meio espero ou que fim / Do vão trabalho
que sigo, / Pois que trago a mim comigo / Tamanho imigo de mim?".
Sá de Miranda não é vivo, não,
nem morreu há pouco tempo. Miranda é contemporâneo de Camões
e, como se vê, falava das inquietações e antagonismos que habitam o
interior dos indivíduos pensantes.
Pois bem. Eu disse que morro de
vontade de falar dos mais que atuais
e pertinentes versos de Sá de Miranda, mas vou ater-me a dois dos fatos
lingüísticos presentes na trova destacada. Um deles é o da palavra "imigo". Sim, "imigo" ("tamanho imigo
de mim", lembra?). Trata-se da forma sincopada de "inimigo", que não
se usa mais hoje em dia, mas ocorre
em autores brasileiros como Casimiro de Abreu e Gonçalves Dias. (A
síncope é o desaparecimento de fonemas do interior de uma palavra.)
No texto de Sá de Miranda, a forma "imigo" parece ressaltar o antagonismo dos dois "seres" que habitam o interior do poeta, ou seja, parece realçar a idéia de que o inimigo
está in/migo, isto é, dentro de cada
um de nós. Como se diz na velha Itália, "se non è vero, è ben trovato".
O leitor certamente percebeu que
acabei de perpetrar a velha figura da
preterição, que consiste em fingir ou
afirmar que não se falará de algo de
que na verdade já se fala ou falou.
Quer outro exemplo? Lá vai: "Não
quero me meter na sua vida, mas...".
O segundo fato lingüístico que
merece comentário é a forma verbal
"desavim" ("Comigo me desavim").
O leitor é capaz de dizer, de bate-pronto, a que verbo pertence a flexão "desavim"? Lá vai uma dica:
"vim" é do verbo "vir", "intervim" é
de "intervir", "provim" é de "provir",
portanto "desavim" é de... É de "desavir", cujo "ato de" é traduzido pelo
substantivo "desavença", que nada
mais é do que uma discórdia, querela ou dissensão, isto é, um conflito.
O leitor pode ter estranhado a forma "desavim" e suas "primas" (como "provim"). Esse estranhamento
talvez se explique pelo uso pouco
freqüente dessas flexões e pela não-associação imediata com a matriz da
família (o verbo "vir"). Na língua culta, "vir" é a base da flexão de "intervir", "provir" ou "desavir" (venho/
intervenho/provenho/desavenho;
vim/intervim/provim/desavim).
Há algum tempo, a Fuvest pediu
aos candidatos que substituíssem
"nascer" por "provir" no verso "Eu
nasci com o samba", da antológica
canção "O Samba da Minha Terra",
de Dorival Caymmi. A resposta? Lá
vai: "Eu provim do samba". É isso.
inculta@uol.com.br
Texto Anterior: Falha ocorreu 2 segundos antes do pouso Próximo Texto: Trânsito: CET altera circulação em ruas da Vila Nova Cachoeirinha Índice
|