São Paulo, domingo, 02 de agosto de 2009

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GILBERTO DIMENSTEIN

Funk também é cultura


Montou-se um festival só para o funk, no qual venceu Mc Dedé, com "Respeitar sua mãe, jogar bola e estudar"

TRAFICANTES e criminosos ligados ao PCC tornaram-se, involuntariamente, inspiradores de algumas letras de funks tocados na Cidade Tiradentes, periferia de São Paulo. Era uma espécie de jogada de marketing. Como eles ajudavam, com recursos, as bandas a produzirem seus discos, as letras vinham com referências elogiosas ao crime e consumo de drogas. Surpreendente é que, nesse ambiente hostil, alguém tenha feito sucesso, nas baladas de funk, sugerindo respeito à família, à lei e ao estudo.
A novidade se explica porque o poder público decidiu virar uma espécie de produtor musical: ajudou as bandas não só a gravarem suas músicas mas também a divulgá-las, desde que sem incitação à violência e às drogas. Montou-se um festival só para o funk, no qual venceu Mc Dedé, com "Respeitar sua mãe, jogar bola e estudar". Mas a operação foi além das letras.
Abriu-se um canal de diálogo com a comunidade, e disciplinaram-se as baladas, limitando seu horário; muitos jovens voltaram mais cedo para casa. O resultado se vê num levantamento feito em hospitais, prontos-socorros e delegacias das redondezas: menos violência.
Converteu-se o funk num instrumento de civilidade e paz. É uma informação relevante diante dos dados, divulgados na semana passada, de aumento da violência em São Paulo, após dez anos de queda contínua; a pior notícia de toda a gestão Serra -além das imagens recorrentes da dificuldade de se enfrentar a cracolândia, foco de uma nova operação. O funk da paz me provocou a comentar, de novo, o Vale-Cultura.

 

Recebi uma série de e-mails me chamando de elitista porque, na coluna passada, classifiquei o projeto do Vale-Cultura como desperdício e sugeri que, se era mesmo para gastar todo esse dinheiro, estaria mais bem aplicado para estimular a vivência cultural de alunos de escolas públicas, como parte de um programa envolvendo pais e professores. O ministro da Cultura, Juca Ferreira, disse, por telefone, que eu estava sendo preconceituoso, sem respeito pela diversidade -e que impedia o entretenimento popular.
Tão confiante ele está na aprovação da medida que, na semana passada, defendeu que se dê não R$ 50, mas R$ 100, para cada trabalhador.
Montou-se uma poderosa aliança do governo com artistas, lideranças empresariais e sindicais. Como comparação, o Bolsa Família custa ao ano R$ 11 bilhões e o Vale-Cultura, se executado em sua plenitude, sairá por cerca de R$ 7 bilhões.
O que a maioria das pessoas não sabe é que o funk da Cidade Tiradentes é apenas um exemplo, entre tantos, do poder de transformação da cultura quando associado a um projeto educativo.

 

Nesta semana, entra em cartaz o filme sobre a história de um garoto tido como irrecuperável (Roberto Carlos Ramos), preso dezenas de vezes e que graças ao apoio de uma pedagoga se encontrou como contador de histórias. É uma experiência semelhante à de Esmeralda Ortiz, viciada em crack, que, ao descobrir o prazer da literatura, escreveu livros e se formou na faculdade.
Cacá Diegues está fazendo um filme em que um de seus personagens é o ex-traficante Feijão (Washington Rimas), que virou intermediador de conflitos, graças aos projetos culturais tocados pelo AfroReaggae. Venho testemunhando esse tipo de resultado em várias partes do mundo, nas quais a cultura exerce um papel mágico.
O problema, em essência, é que o Vale-Cultura tem foco na diversão, e não na educação. Mas existe aí um retrocesso do próprio governo.

 

Uma das boas brigas de Lula foi ter enfrentado (com toda a razão, diga-se) os empresários para que o "Sistema S" ( Sesc, por exemplo) se integrasse mais com as escolas públicas. Aproximar o "Sistema S" das escolas não faz apenas parte da visão de que educação e cultura devem confluir para que os jovens desenvolvam seus potenciais, mas de que se deve perseguir o modelo de integração das políticas públicas.
Esse é o sentido do anúncio do reajuste do Bolsa Família ter ocorrido, na semana passada, em uma cerimônia de formatura de capacitação. Motivo: mostrar uma rede integrada em torno do benefício para não virar uma esmola permanente.
O ministro Patrus Ananias me disse, na semana passada, que pretende fazer acertos com as empresas para que os beneficiários da renda mínima entrem no mercado de trabalho -aliás, haverá em Brasília, na próxima semana, um encontro internacional sobre desenvolvimento social, no qual se pretende mostrar a baixa eficiência das políticas assistenciais isoladas.

 

Lançado isoladamente, o Vale-Cultura, além de um desperdício, é um atraso conceitual. Vai sobrar dinheiro para a socialite Heloísa Faissol, com sua "Dou pra cachorro", e vai faltar para o funk da paz da Cidade Tiradentes, do Mc Dedé.

 

PS - Será lançada amanhã, durante o seminário da Fundação Itaú Social, uma investigação sobre como algumas escolas públicas das regiões mais pobres e violentas dos EUA vêm se recuperando. Realizado por Norman Gall e Patrícia Guedes, o estudo faz uma comparação com o sistema educacional brasileiro. A íntegra do livro está em meu site (www.dimenstein.com.br).

gdimen@uol.com.br


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