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MOACYR SCLIAR
O dinheiro como maldição
Viver sem dinheiro lhe dava tal satisfação que quis escrever um livro; aí começaram seus problemas
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Um economista britânico que passou
os últimos 18 meses vivendo sem dinheiro está lançando um livro contando a sua experiência ("The Moneyless Man", O homem sem dinheiro). Mark Boyle, de 31 anos,
mudou-se para um trailer e passou
a trabalhar três dias por semana em
uma fazenda local em troca de um
lugar para estacionar o trailer e um
pedaço de terra para plantio de subsistência. "Foi o ano mais feliz da
minha vida", disse Boyle, 12 meses
depois de começar a experiência, "e
não vejo nenhum motivo para voltar a um mundo orientado pelo dinheiro".
FOLHA.COM
A EXPERIÊNCIA de viver sem dinheiro, além de lhe dar enorme satisfação, tornou-o famoso: uma figura conhecida, invejada. Daí a
ideia de escrever um livro. Uma
ideia generosa, diga-se de passagem. O que ele pretendia era apenas
ensinar às pessoas que se pode, sim,
ter uma vida muito boa sem o chamado vil metal.
Não teve a menor dificuldade em
encontrar um editor. Em poucas semanas, a obra estava nas vitrines de
livrarias fazendo um enorme sucesso. E aí começaram seus problemas.
Meses depois, o editor foi procurá-lo na fazenda em que morava. Estava radiante, o homem. Três edições já se haviam esgotado, e a repercussão com a mídia e com o público era fantástica. Agora queria
fazer, como era sua obrigação, o pagamento dos direitos autorais. Para
isso tirou do bolso um envelope recheado de cédulas.
O jovem autor olhou para aquilo
surpreso e disse que não poderia
aceitar o dinheiro. Afinal, ia contra
sua filosofia de vida, contra a tese
mesmo de seu livro.
De início, o editor pensou que ele
estava brincando. Depois, quando
viu que o rapaz falava sério, irritou-se: era dono de uma editora tradicional, que sempre pagara seus autores, e não abriria exceção.
O rapaz, por sua vez, também
zangou-se: dinheiro ele não queria
de jeito algum. O homem poderia fazer com aquela soma o que quisesse,
ele não a aceitaria. O editor terminou indo embora, furioso.
Dias depois ele recebeu um aviso
do banco: a quantia tinha sido depositada em sua conta. De imediato
mandou um e-mail ao gerente, dizendo que estornasse o depósito:
era um pagamento indevido.
Passou-se uma semana quando o
carteiro lhe entregou um grosso envelope: vinha, claro, da editora, e
continha o pagamento, em dinheiro,
dos direitos autorais.
E ele foi ao correio, para mandar
de volta a grana ao remetente. Lá
chegando, deu-se conta de que precisava pagar a postagem. O que, obviamente, não seria problema: bastaria usar uma minúscula fração
daquela enorme quantia.
O problema é que isso seria contrariar sua filosofia de vida, seu propósito de mostrar ao mundo que é
possível viver sem o vil metal.
Sem saber o que fazer, ele voltou
para o trailer e guardou o dinheiro
sob o colchão. Espera que alguma
solução lhe ocorra, mas enquanto
isso tem dormido mal, atormentado
por pesadelos. Vê-se rico, muito rico, gastando fortunas com carros,
mulheres, roupas caras, banquetes.
Ele sabe qual a causa desses sonhos: é o eflúvio emitido pelo dinheiro sob o colchão. Poderia queimá-lo,
claro, e já pensou nisso, mas sabe
que, quando acender o fósforo próximo ao monte de cédulas, sua mão
tremerá, tremerá tanto que a chama
se apagará. E aí ele estará definitivamente perdido.
MOACYR SCLIAR escreve nesta coluna, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias
publicadas no jornal.
moacyr.scliar@uol.com.br
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