São Paulo, domingo, 02 de setembro de 2007

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Governo pagará pensão a exilados por hanseníase

Casos registrados até 1986 terão direito a pensão mensal vitalícia de R$ 750

MARTA SALOMON
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Vicente Pires Leite viu o pai vender todos os bens -20 vacas e uma fazenda pequena-, em tentativas vãs de escapar do isolamento antes de chegar ao Santa Marta, um dos 33 hospitais-colônia remanescentes da época em que a hanseníase era chamada de lepra e a política sanitária forçava a reclusão dos portadores da doença.
Getúlio Vargas suicidara-se dias antes com um tiro no peito. Mas, na memória de Vicente, a lembrança da repulsa que experimentou no caminho do exílio, nas proximidades de Goiânia, em agosto de 54, é mais forte que a do luto nacional. As marcas que o bacilo de Hansen deixa no corpo já eram evidentes: "Eu parecia um pé de jabuticaba, ninguém queria chegar perto".
O pânico em relação à doença impôs o isolamento a milhares de pessoas até 1976, ano em que a política de internação compulsória foi abolida no país, pelo menos formalmente.
Mais de 30 anos depois, a Secretaria de Direitos Humanos começa a analisar em setembro os casos de cerca de 3.000 "exilados sanitários", número estimado de sobreviventes dos 101 hospitais-colônia abertos desde a época de dom João 6º, no começo do século 19.
Casos registrados até 1986 terão direito a pensão mensal vitalícia de R$ 750. O pagamento, retroativo ao mês de maio, tem custo estimado, por ora, em R$ 27 milhões por ano. O dinheiro sairá dos cofres da Previdência Social.
"A pensão representa o reconhecimento dos direitos das pessoas que foram confinadas, que sofreram com o preconceito", disse Paulo Vannuchi, ministro da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, que decidirá sobre os pedidos de indenização a partir de pareceres de uma comissão interministerial de avaliação.
Segundo levantamento informal do Morhan (Movimento de reintegração das pessoas atingidas pela hanseníase) o número de "exilados sanitários" pode chegar a 12 mil pessoas em todo o país.
Os ex-internos das colônias têm 70 anos, em média; os mais novos têm entre 40 e 50. Aos 73 anos, Vicente Pires Leite é um dos primeiros na fila para receber indenização mensal.

"Reparação"
A indenização vitalícia aos "exilados" pela hanseníase foi proposta como forma de reparar "os efeitos causados pela ação do Estado, ainda que embasada em teorias científicas vigentes à época, causadora de danos irrecuperáveis".
O texto de justificativa que acompanha a medida provisória assinada em maio pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva fala dos horrores da política de internação compulsória e das dificuldades de ex-internos sobreviverem fora das colônias. "A maior parte dos pacientes dos hospitais-colônia foi capturada ainda na juventude. Foram separados de suas famílias de forma violenta e internados compulsoriamente", afirma trecho do documento, assinado por sete ministros.
A disciplina nas colônias era dura, cruel. Filhos de internos eram separados dos pais ao nascer. As notícias vinham por rádio, mas o contato com o mundo além das cercas era quase inexistente. "Os guardas não permitiam aproximação com os visitantes", conta Vicente Leite.

Castigos
Casos de castigos e punições foram anotados nos livros de ocorrências da colônia Santa Marta, que ainda guardam o registro da entrada da adolescente Maria Aparecida de Oliveira, em 6 março de 1958. Em meio às obras da construção de Brasília, Maria foi levada à colônia pela mãe aos 14 anos. "Diziam que o Distrito Federal não era lugar de leproso", conta.
Internada no pavilhão das crianças, Maria viu Vicente, dez anos mais velho, passar de bicicleta. Trocaram olhares na colônia. Apaixonaram-se, casaram, tentaram a vida em Anápolis, passaram fome com os três filhos e, por fim, voltaram para a colônia sem eles. "Era um lugar triste, mas a gente achava bom. A gente podia ser maltratada, mas ninguém recusava a gente", diz Vicente.


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