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Favela se muda para calçada e a vida piora ainda mais
370 famílias montaram barracos perto de área da qual foram despejados no Capão Redondo
Moradores vivem sem água ou luz, defecam e urinam em embalagens de sorvete e têm de se revezar
nos barracos para dormir
LAURA CAPRIGLIONE
DA REPORTAGEM LOCAL
Luiz Gustavo da Silva Santos,
cinco meses, Andressa Conceição, seis meses, Daniela, quatro
anos, Jonas, quatro anos, Cauane, três anos, Margarida Souza
Ferreira, 36, Cícera da Silva
Santos, 33, e Sandra Maria da
Conceição, 28, moram desde o
dia 24 em um barraco de 4 metros quadrados. Sem água, sem
luz, sem banheiro, sem cozinha,
dependem da sopa fornecida
pela igreja. Defecam e urinam
em embalagens de dois litros de
sorvete. A descarga é no terreno
em frente.
O banho é de favor, com vizinhos mais ricos. Na verdade,
são apenas moradores de barracos "normais", que ficam na favela "normal", logo ali. Porque o
barraco das mulheres e crianças citadas no início não é desse
tipo. Foi erguido com outros
200 ao longo de 630 metros de
uma calçada, no que já foi apelidado de "favela-tripa", que abriga cerca de 370 famílias.
Explica-se: no dia 24, o terreno de 34 mil metros quadrados
no meio do bairro do Capão Redondo (zona sul), e onde moravam cerca de 800 famílias, foi
desocupado pela PM, em cumprimento a uma ordem de reintegração de posse. Ontem, o local, que pertence à Viação Campo Limpo, estava recoberto pelos escombros dos barracos que
o preenchiam -pedaços de fogão, boneca queimada, colchão,
cadernos chamuscados, garrafas usadas podiam ser vistos entre toneladas de entulhos iluminadas aqui e ali por fogueiras
altas. Nenhuma alma.
Do outro lado da rua, bem em
frente à destruição, em uma faixa de calçada de 2,5 metros, esticou-se o que sobrou de vida na
favela. Um barraco colado ao
outro, restos como paredes.
Versinho para Olga
A vida da favela teve de entrar na linha -do meio fio-,
mas continua. "Vai acontecer
milagre. Milagre. Vai acontecer
milagre", repete, às 23h, o sistema de caixas amplificadas da
Igreja Pentecostal Águas Vivas.
É o pastor Raimundo Medeiros
do Nascimento, 45, quem, cercado de obreiras (quatro, superpovoando o seu barraco),
anuncia a boa nova. Ele conseguiu salvar a Bíblia, o púlpito
que ele mesmo construiu e as
caixas amplificadas, além de
um pano de cetim vermelho,
que decora a igreja de papelão.
Do lado de fora, cerca de cem
homens e mulheres perambulam de um lado para outro. São
os que terão de passar a noite
em claro. Eles só poderão dormir pela manhã, quando acordarem as crianças e os que terão de sair para trabalhar. É que
não há lugar para todos nas moradias improvisadas.
Mas aqueles pedreiros, faxineiras, cozinheiros, diaristas,
auxiliares de serviços gerais,
babás etc não choram ou reclamam. Por volta das 20h, cerca
de 300 deles -mais filhos e cachorros- reuniram-se defronte a um barraco decorado com a
bandeira vermelha de uma tal
Frente de Luta pela Moradia,
FLM, um dos vários grupos que
organizam a população pobre
da periferia de São Paulo para a
obtenção de moradia. A negra
Felícia Mendes Dias, 50, é a
principal liderança.
A Secretaria da Habitação da
gestão Gilberto Kassab (DEM)
respeita Felícia. "É uma mulher devotada à luta pela moradia", diz um funcionário do governo. Por influência de Felícia, o grupo de despejados na
favela-tripa adotou um novo
nome: Nova Associação Olga
Benário.
Após combinarem como agirão no dia seguinte, quando assistentes da prefeitura viriam
conhecer as famílias que deverão receber alguma ajuda, o
grupo -punhos erguidos- recitou forte o versinho: "Olga Benário / Lutou contra o nazismo
/ Construindo o socialismo".
O filme "Olga", do diretor
Jayme Monjardim, já passou
algumas vezes naquele miolo
do Capão Redondo, uma das
áreas com pior IDH da cidade.
Gripe sulina?
Com voz mansa, Maria Helena Ferreira, 65, vice-presidente
da Olga Benário, é quem organiza o cadastro do pessoal que
reivindica ajuda da prefeitura.
Incansável, a mulher acordou
às 4h para ir ao hospital cardiológico Dante Pazzaneze, na Vila
Mariana -ela sofreu um infarto há dois anos-, e às 23h ainda
corria de barraco em barraco,
conversando, tranquilizando,
aconselhando. Aproveitou para
comer um pouco da sopa que as
paróquias do bairro mandaram
para a favela-tripa.
A pequena Meyssa Beatriz
Pereira da Silva, um mês e quatro dias de vida, espirra fraquinho. Está gripada. Pergunta-se
à mãe, Marisa Silva Santos, 21,
se não tem medo da gripe suína.
Cabelos curtos, olhar inteligente, ela responde: "Gripe sulina?" Meyssa já foi atendida no
posto de saúde do Parque do
Engenho, ali perto. Liberada.
"Graças a Deus. A gente só
tem de agradecer", diz a doméstica Marinalva Francisca de Jesus Santos, 40. A gratidão é porque não está chovendo em São
Paulo nos últimos dias.
O marido de Marinalva está
preso na cadeia do Belenzinho,
acusado de roubo -"ele é inocente", ela diz. De dentro da cadeia, o homem assistiu pela TV
ao incêndio que consumiu a favela. Reconheceu o barraco de
sua família ardendo. O homem
telefonou para a mulher. Ouviu
dela a informação: "Estou na
beira da calçada, como todo
mundo". O homem ficou um
pouco mais tranquilo, a mulher
-bebê no colo- garantiu.
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