São Paulo, quinta-feira, 02 de setembro de 2010

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PASQUALE CIPRO NETO

"Já podeis, da pátria filhos, ver..."


A letra do Hino da Independência está escrita na variedade culta, formal, e, digamos, um tanto antiga


O FERIADÃO DE 7 de setembro está aí, e, como de costume, o que menos importa para 99,99% das pessoas é o motivo do feriado, o que ele significa etc. O que importa mesmo é o feriado em si -e no aumentativo, se possível, que ninguém é de ferro.
Posto isso, vou atrever-me a "estragar" o feriadão, lembrando não o motivo pelo qual ele ocorre (motivo que parece óbvio, creio), mas algo que certamente está guardado no fundo do baú da memória dos mais velhos: a letra do Hino da Independência. Digo "dos mais velhos" porque não sei se a garotada de hoje aprende isso na escola ou, se aprende, se memoriza a letra e a melodia.
Pois bem, caro leitor, lembra o começo desse hino? Vamos lá: "Já podeis, da pátria filhos, / Ver contente a mãe gentil / Já raiou a liberdade / No Horizonte do Brasil". Os mais velhos certamente lembramos que era comum uma brincadeira advinda sabe Deus se da mordacidade inerente ao espírito infanto-juvenil ou se da dificuldade diante do vocabulário e da sintaxe um tanto "esdrúxulos" dessa e de outras letras de hinos. A brincadeira em questão era a do japonês ("Japonês tem cinco filhos / O primeiro sapateiro...").
Mas deixemos para lá o japonês, seus cinco filhos e a tentativa de "simplificação" (ou de ridicularização) da letra e fiquemos com alguns dos passos típicos desse tipo de texto. Logo em "Já podeis, da pátria filhos, ver contente a mãe gentil" se nota o recurso ao emprego do hipérbato, figura que consiste na inversão da ordem natural das palavras. Na ordem direta, o trecho "da pátria filhos" passa a "filhos da pátria", expressão que funciona como vocativo (termo que representa o ser ao qual o emissor se dirige).
Por ser independente, o vocativo é móvel, ou seja, não tem propriamente uma posição definida na sequência dos termos, embora seja mais comum que apareça no início do enunciado, como se vê neste trecho de "Marina", de Dorival Caymmi: "Marina, você já é bonita com o que Deus lhe deu". Nada impede, porém, o "passeio" do termo "Marina" pela frase: "Você, Marina, já é bonita com o que Deus lhe deu"; "Você já é bonita, Marina, com o que Deus lhe deu"; "Você já é bonita com o que Deus lhe deu, Marina".
O caro leitor certamente notou que, por onde andou, o termo "Marina" carregou consigo a(s) vírgula(s), obrigatória(s) para isolar o vocativo. Sem a(s) vírgula(s), muito vocativo vira sujeito, como se vê neste exemplo, de "Deixa a Vida me Levar" (canção de Serginho Meriti), um dos grandes sucessos de Zeca Pagodinho: "Deixa a vida me levar / Vida (,) leva eu". E então? Com vírgula ou sem vírgula? Depende, uai! Sem vírgula, a vida me leva; com vírgula, eu peço à vida que me leve.
Antes que algum purista questione o que faz na letra o pronome reto "eu" como objeto direto ("leva eu"), vou logo dizendo que, francamente, isso não são horas de rabugice. A construção presente na letra retrata um fato mais do que comum em certos dialetos do Brasil, portanto...
Pois a letra do Hino da Independência obviamente está escrita em outra variedade de língua -a culta, formal (mais do que formal), e, digamos, um tanto antiga, razão pela qual nela ocorrem certos preciosismos vocabulares e sintáticos. Um desses preciosismos está no emprego da segunda do plural ("vós", em "podeis" e em outras passagens).
Vamos, pois, à ordem direta do início da letra: "Filhos da pátria, já podeis ver contente a mãe gentil" (ou "Já podeis ver contente a mãe gentil, filhos..." ou faça você a sua, caro leitor). E que os filhos da pátria possamos mesmo partilhar desse contentamento da Mãe gentil, nem sempre tão gentil conosco. É isso.

inculta@uol.com.br


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