São Paulo, domingo, 3 de janeiro de 1999

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GILBERTO DIMENSTEIN
Meus 500 anos


Uma brasileira analfabeta tem, em média, 6,5 filhos.
À medida que sobe a escolaridade, a mulher vai reduzindo esse número.
Se tiver nível secundário, a média desce para 2,5 filhos; universitário, 2 filhos.
As razões são várias. Uma delas, óbvia: ausência de conhecimentos elementares sobre como prevenir a gravidez.
A tragédia estatística prossegue depois do parto. Bebês de mães analfabetas correm várias vezes mais risco de morrer antes de completar 12 meses.
É uma inversão. Quem menos dispõe de condições para criar filhos produz a família mais numerosa.
Decidi escolher esse absurdo para abrir a primeira coluna de 1999, quando se aceleram as contagens regressivas do fim do milênio, do século e dos 500 anos da descoberta do Brasil.
Nada me parece mais simbólico das consequências da ignorância do que a fertilidade cruel do analfabetismo.
Somos, hoje, uma nação de analfabetos.
Misturam-se aqueles que nem sequer sabem escrever o nome, os que lêem mas não entendem, os que entendem mas não contextualizam e, enfim, os analfabetos digitais -as legiões incapazes de lidar com essa essencial escrita contemporânea.
Somos a geração que, no balanço dos 500 anos, cruzado com o fim de século e de milênio, vê por todos os lados os filhotes da ignorância.
É um fertilizador da miséria e das mais variadas formas de violência; vai das taxas de mortalidade infantil às gangues, passando pelo suplício de crianças nos semáforos ao lixo na rua.
Somos a geração que aprendeu a ter medo de andar na rua.
A geração 500 testemunha como ainda é enraizada a falta de um valor básico da nação sobre a inclusão social.
Com todos os notáveis avanços, as elites ainda, no geral, se comportam como os boçais colonizadores portugueses.
Sentem-se numa terra a ser explorada rapidamente; olham os "índios" e imaginam-se superiores porque, afinal, andam vestidos de griffe e dominam a navegação que os levam a mundos supostamente civilizados -hoje, Miami ou Nova York.
Com todos os avanços (os quais essa coluna tem prazer em registrar sempre que pode), somos ainda uma nação boçal.
Boçal porque o grande salto civilizatório que deveríamos dar ainda não foi dado: uma escola pública de qualidade, equalizando direitos e oportunidades.
Número crescente de vozes aponta e se articula em torno dessa obviedade política -a conquista da democracia é a conquista da escola pública.
Mas ainda está longe de ser uma bandeira cristalina dos dirigentes sindicais, empresariais e, vamos reconhecer, dos meios de comunicação.
Deveríamos lutar pelo fim da ignorância pública assim como uma expressiva fatia da elite lutou, no século passado, pelo fim da escravidão.
Há muita coisa sendo feita para aumentar a cidadania; mas ainda é muito pouco, considerando o tamanho do desafio.
Somos uma nação sem líderes morais.
Nem vou pedir muito: quantos milionários brasileiros fizeram alguma doação para a universidade pública que os ajudou a virar milionários?
Daí que acabo esta primeira coluna do ano com um símbolo às avessas da fertilidade do analfabetismo, num reforço ao meu otimismo.
Para comemorar os 500 anos da descoberta, foi lançado um pacto justamente na região em que os portugueses desembarcaram: Porto Seguro, Santa Cruz de Cabrália, Belmonte, Eunápolis e Prado.
Com a ajuda de fundações empresariais (Odebrecht), organizações não-governamentais (Instituto Ayrton Senna), Ministério da Educação, empresários e voluntários, prefeitos desses municípios baianos se comprometeram a colocar todas as crianças nas escolas.
Não apenas colocá-las nas salas de aulas. Mas ajudá-las a ter uma educação de qualidade.
Produz-se no local da descoberta não um muro de lamentações do que foram os 500 anos, mas um farol do que podemos ser se trocarmos a esterilidade da ignorância pela fertilidade do saber.
PS - Palavra dos meninos e meninas da geração 500. Uma pesquisa perguntou, na véspera do Natal, a um grupo de brasileiros de 8 a 12 anos, qual seria o melhor presente para as crianças no Brasil.
A resposta mostra que, talvez, esteja vindo aí gente muito mais lúcida do que nós. Em primeiro lugar: nenhuma criança fora da escola.


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