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GILBERTO DIMENSTEIN
Meus 500 anos
Uma brasileira analfabeta
tem, em média, 6,5 filhos.
À medida que sobe a escolaridade, a mulher vai reduzindo esse número.
Se tiver nível secundário, a
média desce para 2,5 filhos;
universitário, 2 filhos.
As razões são várias. Uma
delas, óbvia: ausência de conhecimentos elementares sobre como prevenir a gravidez.
A tragédia estatística prossegue depois do parto. Bebês de
mães analfabetas correm várias vezes mais risco de morrer
antes de completar 12 meses.
É uma inversão. Quem menos dispõe de condições para
criar filhos produz a família
mais numerosa.
Decidi escolher esse absurdo
para abrir a primeira coluna
de 1999, quando se aceleram as
contagens regressivas do fim
do milênio, do século e dos 500
anos da descoberta do Brasil.
Nada me parece mais simbólico das consequências da ignorância do que a fertilidade
cruel do analfabetismo.
Somos, hoje, uma nação de
analfabetos.
Misturam-se aqueles que
nem sequer sabem escrever o
nome, os que lêem mas não entendem, os que entendem mas
não contextualizam e, enfim,
os analfabetos digitais -as legiões incapazes de lidar com
essa essencial escrita contemporânea.
Somos a geração que, no balanço dos 500 anos, cruzado
com o fim de século e de milênio, vê por todos os lados os filhotes da ignorância.
É um fertilizador da miséria
e das mais variadas formas de
violência; vai das taxas de
mortalidade infantil às gangues, passando pelo suplício de
crianças nos semáforos ao lixo
na rua.
Somos a geração que aprendeu a ter medo de andar na
rua.
A geração 500 testemunha
como ainda é enraizada a falta de um valor básico da nação
sobre a inclusão social.
Com todos os notáveis avanços, as elites ainda, no geral, se
comportam como os boçais colonizadores portugueses.
Sentem-se numa terra a ser
explorada rapidamente;
olham os "índios" e imaginam-se superiores porque, afinal, andam vestidos de griffe e
dominam a navegação que os
levam a mundos supostamente
civilizados -hoje, Miami ou
Nova York.
Com todos os avanços (os
quais essa coluna tem prazer
em registrar sempre que pode),
somos ainda uma nação boçal.
Boçal porque o grande salto
civilizatório que deveríamos
dar ainda não foi dado: uma
escola pública de qualidade,
equalizando direitos e oportunidades.
Número crescente de vozes
aponta e se articula em torno
dessa obviedade política -a
conquista da democracia é a
conquista da escola pública.
Mas ainda está longe de ser
uma bandeira cristalina dos
dirigentes sindicais, empresariais e, vamos reconhecer, dos
meios de comunicação.
Deveríamos lutar pelo fim da
ignorância pública assim como uma expressiva fatia da
elite lutou, no século passado,
pelo fim da escravidão.
Há muita coisa sendo feita
para aumentar a cidadania;
mas ainda é muito pouco, considerando o tamanho do desafio.
Somos uma nação sem líderes morais.
Nem vou pedir muito: quantos milionários brasileiros fizeram alguma doação para a
universidade pública que os
ajudou a virar milionários?
Daí que acabo esta primeira
coluna do ano com um símbolo às avessas da fertilidade do
analfabetismo, num reforço ao
meu otimismo.
Para comemorar os 500 anos
da descoberta, foi lançado um
pacto justamente na região em
que os portugueses desembarcaram: Porto Seguro, Santa
Cruz de Cabrália, Belmonte,
Eunápolis e Prado.
Com a ajuda de fundações
empresariais (Odebrecht), organizações não-governamentais (Instituto Ayrton Senna),
Ministério da Educação, empresários e voluntários, prefeitos desses municípios baianos
se comprometeram a colocar
todas as crianças nas escolas.
Não apenas colocá-las nas
salas de aulas. Mas ajudá-las a
ter uma educação de qualidade.
Produz-se no local da descoberta não um muro de lamentações do que foram os 500
anos, mas um farol do que podemos ser se trocarmos a esterilidade da ignorância pela
fertilidade do saber.
PS - Palavra dos meninos e
meninas da geração 500. Uma
pesquisa perguntou, na véspera do Natal, a um grupo de
brasileiros de 8 a 12 anos, qual
seria o melhor presente para as
crianças no Brasil.
A resposta mostra que, talvez, esteja vindo aí gente muito mais lúcida do que nós. Em
primeiro lugar: nenhuma
criança fora da escola.
E-mail: gdimen@uol.com.br
Aprendiz: www.aprendiz.com.br
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