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MOACYR SCLIAR
Nus ao telefone
Um terço dos usuários de telefonia
na Grã-Bretanha faz chamadas
completamente nus, sendo os homens mais propensos a essa prática
do que as mulheres, revelou um estudo divulgado pela agência de notícias Reuters. A pesquisa, de responsabilidade dos Correios da Grã-Bretanha, revelou que cerca de 40% dos
homens admitiram conversar sem
roupas, contra 27% das mulheres.
Folha Online, 28 de março de 2006
"Fale, John. Pode falar. Fale bastante, se quiser.
Aproveite, diga tudo o que você
tem a dizer. Esta, quero lhe avisar, é a última vez que você me liga: a nossa relação termina aqui,
John.
Por quê? Por que, você pergunta? Deus, John, como você é cínico. Mas tudo bem, vou lhe dizer.
Você, John, está me desrespeitando. Como sempre me desrespeitou, aliás, mas agora você acrescentou ao desrespeito um requinte de perversidade. Você decidiu
me ligar e, antes disso, você tomou uma providência muito típica de seu caráter. Você tirou toda
a roupa, John. Você está pelado.
Como é que eu sei? Calma, eu
não tenho videofone. Aliás, nem
precisaria disso. Conhecendo você
como conheço, sei de tudo o que
você faz, mesmo à distância. Mas,
no caso, fui ajudada por um amigo, um bom amigo. Você não o
conhece, mas ele ontem estava no
pub que você freqüenta, a seu lado inclusive. Você comentava esta pesquisa que foi feita pelos Correios, mostrando que cerca de
40% dos homens conversam ao
telefone sem roupa. Você disse,
muito orgulhoso, que jamais telefona para qualquer mulher -sua
namorada, inclusive, você fez
questão de ressaltar isso- sem
antes tirar a roupa. Você disse
que tal coisa, para você, funciona
como um verdadeiro afrodisíaco.
E você lamentou não ter videofone; se tivesse, você concluiu, às
gargalhadas, elas saberiam o que
estão perdendo.
De modo que você está me ligando pelado. Mas isso não é o
pior, John. O pior é o lugar de onde você está me ligando.
Você está sentado no vaso sanitário, John. Você, pelado, está
sentado no vaso sanitário. Como
é que eu sei? Não, eu não tenho videofone, John. Mas tenho ouvidos
muito bons. Estou ouvindo o ruído da água enchendo a caixa,
John. Você acabou de dar a descarga. Você fez o que tinha de fazer, você se limpou, você deu a
descarga.
O que devo concluir disso? É
muito simples, John. Com as outras, você fala nu ao telefone porque assim se excita; para mim,
você telefona pelado para não
perder tempo: fala e faz as necessidades ao mesmo tempo. Eu até
ouvi você gemer, John. E sei que
não era de paixão. Era a sua tenaz prisão de ventre.
Mas não tem importância,
John. Eu também estou nua. E
também estou no banheiro. Só
que não estou sozinha. Estou
acompanhada. Por aquele amigo
que você não conhece, mas que
ontem, no bar, estava na mesa ao
lado da sua. Ele ouviu a conversa
e logo em seguida me ligou. Ligou
de roupa, bem entendido, porque
não tem dessas fantasias. Eu pedi
que viesse aqui e descobri que não
apenas é leal, é também fora de
série na cama.
Este barulho que você está ouvindo? É a água do chuveiro, correndo. Nós agora vamos tomar
banho juntos. Fique aí pelado, fazendo suas ligações. Nós vamos
nos divertir muito mais. E sem telefone."
Moacyr Scliar escreve nesta coluna, às
segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas no jornal.
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