São Paulo, domingo, 03 de junho de 2007

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GILBERTO DIMENSTEIN

Tesouros escondidos


Foram vivenciadas as dores dos personagens que, na verdade, eram as suas, em uma espécie de psicodrama

NINGUÉM TINHA a menor idéia de que as oficinas de expressão se transformariam num dos mais detalhados registros já realizados no Brasil (também não vi nada parecido no exterior) dos meios de despertar o talento de indivíduos que se imaginam sem nenhum talento e, assim, ajudá-los a evitar a marginalidade. Descobri esse mapa da mina educativo por acaso, quando me enviaram um vídeo promocional sobre um filme de ficção (sem data de lançamento comercial) que, baseado no texto do dramaturgo Plínio Marcos ("Querô"), disseca a violência. Mais do que o filme em si, entretanto, chamou-me a atenção um detalhe atrás das câmeras: uma cena do choro real de alguns adolescentes no último dia da gravação, todos se abraçando com lágrimas no rosto.

 

Aqueles jovens eram amadores selecionados para atuar no filme, a maioria deles vivendo na invisibilidade e na fronteira da marginalidade da periferia de Santos. Passaram por cinco semanas de oficinas diárias, em dois períodos, para que aprendessem a se expressar, soltando o corpo e, depois, a fala. Foram convidados a vivenciar as dores dos personagens, que, na verdade, eram as suas próprias. Meteram-se, involuntariamente, numa espécie de psicodrama. Descobri que todo esse processo ficou gravado em horas e mais horas de vídeo, material condenado ao esquecimento. Podemos ver como eles, nos primeiros dias, estavam duros, desconfiados, presos, tímidos e cabisbaixos. Vamos sabendo como não se sentiam reconhecidos em quase nenhum espaço, imaginando-se soltos ao vento, sem nenhuma perspectiva, divididos entre a remota possibilidade de serem jogadores de futebol e o nada remoto risco de se envolverem em algum tipo de marginalidade.
 

À medida que vão ocorrendo os exercícios, eles vão assumindo uma nova postura corporal, falam com mais desenvoltura, entregam-se, choram, sentem o próprio corpo, insensível pela coleção de violências. Suas histórias reais, contadas diante da câmera, confundem-se com uma trama ficcional; em alguns casos, são mais fortes que o roteiro encenado. As imagens transmitem a sensação de que aqueles meninos, quase todos com cicatrizes pelo corpo, ficam mais altos. É como se fosse possível apalpar o brilho que vai transparecendo nos corpos suados das oficinas. O ator principal, Maxwell Nascimento, disse-me que, antes de atuar no filme, não sabia o que faria no futuro, mas, nas entrelinhas, admitia que o presente já lhe estava, inexoravelmente, reservando o pior futuro. "É como se, vivendo num ambiente sem opção, eu não tivesse nenhuma opção." Maxwell ganhou, em 2006, o prêmio de melhor ator no Festival de Cinema de Brasília.
 

Isso não significa que apenas essa experiência, tão fugaz, seja antídoto da marginalidade. Sabemos que o caminho até a delinqüência começa bem cedo, exatamente no berço, e se propaga na vida familiar até a escola, gerando a incapacidade de inserção na sociedade pela carência de competências e pelo excesso de ressentimento. É o ciclo de ferro da invisibilidade, só visível na marca dos corpos. Aquelas gravações são um mapa da mina de um tesouro pedagógico universal, dissecado em livros: deixam nítida a possibilidade de abertura para a inserção desses jovens na sociedade por meio da arte. Essa brecha produz sensação de pertencimento e, com isso, perspectiva de futuro. É por isso que os corpos deles parecem ficar mais altos; na verdade, sua alma está mais altiva. E a capacidade de se emocionar (o que significa o direito de se sentir frágil e, portanto, humano) é o caminho para o brilho. O problema é que, depois da ficção, vem a realidade. Entende-se, então, a cena real do choro, no último dia de gravação. Alguém pergunta a um dos atores qual seria, a partir dali, sua perspectiva. Ele, rapidamente, responde com outra pergunta: "O que significa perspectiva?". Por incrível que pareça, a palavra nem fazia parte de seu vocabulário.
 

Esse é daqueles documentos que informam solenemente que o pior dos nossos desperdícios é o de talentos -deixamos de ter pessoas que brilham para nutrir indivíduos que matam ou se matam.
 

PS - Dois jovens das oficinas (Eduardo Bezerra e Samuel Castro) decidiram seguir carreira no cinema -e, apoiados pelo cineasta Carlos Cortes, toparam transformar aquelas dezenas de horas de gravação no documentário, intitulado "Eu Fiz Querô", mostrando o poder transformador da educação. O filme será apresentado no próximo dia 18, às 20h, gratuitamente, pelo projeto Folha Documenta, no cine Bombril. Coloquei no meu site (www.dimenstein.com.br) algumas das imagens. Esse trabalho foi mostrado para 300 adolescentes de Paraisópolis: pareciam hipnotizados.

gdimen@uol.com.br


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