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São Paulo, domingo, 03 de agosto de 2003

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OH VIDA, OH DOR

Amigos dizem que reclamam demais; médicos não acham a causa, mas vítimas sofrem com dores reais

"Poliqueixoso" tem sintomas sem doença

LULIE MACEDO
ROBERTO DE OLIVEIRA
DA REVISTA

Doem a cabeça, as costas, o estômago, o coração acelera, falta ar. Quando não é uma coisa, é outra. Não raro, tudo ao mesmo tempo.
O clínico-geral não dá jeito, o gastroenterologista não encontra nada, o cardiologista pede uma batelada de exames, mas manda-o de volta para casa. Se o seu corpo parece estar pior que um carro enguiçado e médico nenhum descobre o problema, tente considerar uma nova possibilidade: você pode ser um poliqueixoso.
Poliqueixa é um jargão médico usado para definir o comportamento do paciente que percorre diversas especialidades apresentando múltiplos sintomas, mas cujos exames não revelam nada.
Poliqueixa e hipocondria andam juntas -só que nem sempre pelo mesmo caminho.
O hipocondríaco típico pode achar que tem um tumor maligno no intestino, que já se espalhou pelo corpo, e que nenhum médico consegue diagnosticar. O poliqueixoso reclama de dores no estômago, também nas costas, mas não acha que tem apenas alguns meses de vida.
"O hipocondríaco sente uma angústia mais intensa porque se sente "perseguido" por um órgão, e a qualquer sinal diferente dessa parte do corpo ele fantasia a morte iminente. No poliqueixoso, os sintomas são difusos, simultâneos e nem sempre têm essa carga catastrófica", afirma o psicanalista carioca Carlos Leal, que estuda o tema há 20 anos.

Tese de sociólogo
O comportamento poliqueixoso é tão comum que extrapolou os corredores de hospitais e consultórios médicos e virou tese de sociólogo. Durante os quatro anos em que trabalhou na Secretaria da Saúde de Presidente Prudente (interior de São Paulo), no começo dos anos 90, o sociólogo Sebastião Chammé, 54, observou o comportamento de pacientes que pareciam ser "onipresentes".
"Percebi que eles repetiam a queixa em mais de um local no mesmo dia. O sujeito era encontrado num hospital público, mais tarde na fila de algum posto de saúde e depois ainda concorria em atendimentos de emergência", conta Chammé.
O sociólogo fez dos 58 casos que acompanhou uma tese de doutorado apresentada na Faculdade de Saúde Pública da USP (Universidade de São Paulo). Segundo Chammé, os poliqueixosos têm duas características: a descrição metaforizada dos sintomas (não dizem "dói a barriga", mas "dói a barriga como se estivessem arrancando um pedaço") e a falta de consciência do problema.
"O poliqueixoso não se reconhece como tal. O processo acontece de forma inconsciente, e ele não sabe que o problema pode ser emocional", explica o clínico-geral José Antonio Atta, diretor-médico dos ambulatórios do Hospital das Clínicas.
Para o psiquiatra José Atílio Bombana, coordenador do Programa de Atendimento à Somatização da Unifesp (Universidade Federal de SP), o termo poliqueixoso tem um "quê" de pejorativo. "É como se fosse apenas um "piripaque", quando, na verdade, esse comportamento pode estar relacionado a um distúrbio psiquiátrico", diz. O diagnóstico exato seria de uma doença chamada transtorno multisomatoforme, na qual o indivíduo "desconta" no corpo uma série de problemas emocionais.
O poliqueixoso, porém, não associa sintoma físico com emocional. "O meu problema não tem nada a ver com a cabeça, não é psicológico. É físico, dói", explica a aposentada Elisa*, 69, que atribui as dores nos pés às varizes ou a uma possível bursite.
Na avaliação médica, ela não está mentindo, porque o poliqueixoso realmente sente o que diz. A base do problema pode ser emocional, mas isso não significa que as sensações desagradáveis sejam invenção.
A aposentada, apesar de não se ver como poliqueixosa, precisa constantemente do aval médico para ficar em paz. "Os médicos não descobriram nada. Só que eu não conseguiria voltar para casa sem ouvir a avaliação de um deles. Me tranquiliza", diz ela.

Dor, em vez de tristeza
Um traço marcante na maioria dos poliqueixosos é a capacidade precária de simbolizar seus sentimentos, segundo Bombana. "Eles têm um psiquismo muito arcaico, sonham pouco, fantasiam pouco. Geralmente as angústias dessas pessoas se passam no corpo", define o psiquiatra da Unifesp. "Se ela brigou com o filho ou está mal porque perdeu o emprego, sente dor no peito em vez de tristeza."
Algumas vezes, por trás do comportamento poliqueixoso, pode realmente haver uma doença. Ansiedade, estresse, depressão, síndrome do pânico e fibromialgia (dores musculares generalizadas) são algumas delas, e nesses casos a poliqueixa pode até dificultar o diagnóstico.
"Atendemos aproximadamente 50 a 60 pacientes por dia, e cerca de 15 a 20 deles apresentam tantos sintomas que acabamos sem saber o que tratar", diz José Morato, médico-assistente do Pronto-Atendimento de Pneumologia do Hospital São Paulo.
Descobrir que o paciente é poliqueixoso pode levar anos, porque ele não recebe atendimento fixo, mas percorre várias especialidades em consultórios diferentes. Além disso, poucos profissionais de saúde conhecem o transtorno.
Resultado: o profissional não encontra nada que justifique as queixas do doente, que, por sua vez, troca de médico na tentativa de encontrar a resposta para o seu sofrimento, alimentando um ciclo vicioso.
Outro complicador é a falta de apoio da família. "Em casa, acham que é mania. Na rua, meus colegas falam que é frescura", conta o comerciante Paulo*, 56, que chega a inventar "compromissos", para esconder da família suas visitas aos médicos.

Oh vida
Para evitar prejuízos, algumas empresas de saúde desenvolvem programas isolados preventivos e de acompanhamento de poliqueixosos.
Uma cooperativa de planos de saúde criou um personagem inspirado na pessimista hiena Hardy, de Hanna-Barbera (dona do bordão "oh dia, oh céus, oh vida, oh azar"), para que o usuário poliqueixoso se identifique com suas lamentações. Uma palestra composta com a teatralização da rotina de um poliqueixoso já foi vista por 80 funcionários em duas empresas. Em uma delas, a utilização do plano foi reduzida em 23%.
Na avaliação do psicanalista Carlos Leal, tanto o serviço público como o privado deveriam trabalhar com equipes integradas de saúde. "Um médico capaz de ouvir irá compreender a origem do sofrimento, para então encaminhá-lo para o tratamento da doença que pode estar por trás desse comportamento", diz ele.


* Os nomes foram trocados a pedido dos entrevistados


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