São Paulo, domingo, 03 de setembro de 2006

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GILBERTO DIMENSTEIN

Estamos melhores e mais chatos



A cada disputa eleitoral, mais cidadãos aprendem que o avanço de um país não depende de seres iluminados

PESQUISA DATAFOLHA divulgada na semana passada revelou que apenas 6% dos eleitores mudaram seu voto na disputa à Presidência. É mais um entre tantos sinais de desinteresse neste pleito. Não é, necessariamente, má notícia: a chatice eleitoral reflete uma série de aprendizados dos brasileiros.
O ambiente de modorra ocorre, em boa parte, porque o desfecho das urnas parece, até aqui, previsível. Mas também porque faltam propostas polêmicas, dessas de despertar paixões e temores. Há quem diga que a desilusão crescente com os políticos, com seus mensalões e sanguessugas, aumentou o descrédito dos cidadãos com a vida pública. Os militantes petistas, com sua indispensável coreografia nas ruas, estariam apáticos.
Há um lado educativo por trás da chatice: o amadurecimento do país, no geral, e do eleitor, em particular.

 

Com Lula no poder, o PT levou um banho de realidade e teve de abandonar o discurso salvacionista. Basta ler o programa do presidente para um eventual segundo mandato, lançado na semana passada. É um aglomerado de generalidades e obviedades, sem compromisso com metas concretas, distante daqueles tempos heróicos. Vendia-se a sensação de que se poderia mudar tudo rapidamente, da política econômica aos maus costumes. Precisaria de "vontade política" e disposição de enfrentar as elites, o imperialismo, o neoliberalismo, os marajás, o FMI, o regime militar, e assim por diante.
O Brasil não valoriza aloprados como Chávez, desnorteados nativistas como Evo Morales ou ditadores como Fidel. Optou-se, mesmo em amplos segmentos da esquerda, pela racionalidade do superávit primário e de metas inflacionarias.
 

A cada disputa, mais cidadãos vão aprendendo que o avanço de um país depende de uma conjugação de esforços, e não de seres iluminados, com soluções mágicas. Por mais que tente se diferenciar de seu antecessor, Lula não teria uma inflação tão baixa se não fosse o Plano Real. Nem conseguiria lançar (e melhorar) o Bolsa-Família se não herdasse os programas de renda mínima que lhe foram deixados.
O avanço social do país está atrelado a reformas difíceis de serem explicitadas num ano eleitoral. Sem redução de gastos, o crescimento econômico será rastejante. Terão de mexer, mais cedo ou mais tarde, em vespeiros como as aposentadorias.
Estamos numa situação em que as demandas sociais não param de crescer e os impostos já chegaram ao limite do suportável. Os governantes terão de colocar o aprimoramento da gestão, para melhorar o gasto, como uma alternativa inescapável. É um debate chato, cheio de números, enfim, modorrento.
 

Quanto se fala em gestão, fala-se em complexas redes de articulação de políticas públicas -mais uma vez, um assunto técnico e intrincado. Os candidatos à Presidência juram, por exemplo, que a educação será uma prioridade sagrada. Mas as escolas estão nas mãos dos governadores e dos prefeitos. Bobagem um presidente ficar falando sozinho em Brasília sem montar essas parcerias. O que se faz hoje em ensino colhe-se muito tempo depois.
Vamos aos poucos aprendendo que as articulações locais são a principal base para a melhoria da saúde, da educação e até da segurança. Não é por acaso que as eleições das prefeituras, especialmente em São Paulo, foram muito mais animadas. No caso paulistano, ainda tínhamos uma disputa acirrada.
 

A atual chatice vem, em parte, da falta do charme da ruptura: suspensão de contratos, calote de dívidas, nacionalização de empresas, grandes aumentos do salário mínimo. Reduziu-se o clima das bravatas e jogadas de marketing, como a da caça aos marajás. Até porque há mais rigor nas sabatinas da imprensa.
Há uma relativa calmaria. A democracia tornou-se rotina, não há convulsão na rua, a inflação está baixa, o país está crescendo pouco -mas existe algum crescimento-, não se fala em fuga de capitais, há abundância de dólares, o petróleo não deixa mais o Brasil tão vulnerável. Apesar de timidamente, os indicadores sociais evoluem. Lula, o ícone das rupturas, transformou-se, para o bem e para o mal, num símbolo da estabilidade.
Nada disso indica que o Brasil seja civilizado. Basta ver a violência urbana, o desemprego juvenil, a ignorância generalizada, a falta de estímulos à produção e a corrupção.
 

Indica que estamos menos ingênuos e mais previsíveis e esclarecidos.
 

P.S. - Imprevisível mesmo foi como artistas e intelectuais, em razão de suas preferências, jogaram para o alto a questão da ética. Institucionalizaram o "rouba mas faz". É a cultura a serviço do cinismo.


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