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São Paulo, quarta-feira, 03 de dezembro de 2003

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SP 450

Debate destaca o desafio de ser jovem em São Paulo


Evento inaugura o ciclo "Vida na Metrópole", série de encontros que propõe reflexão sobre a relação dos paulistanos com a cidade, prestes a comemorar seu 450º aniversário


LUIZ CAVERSAN
DA REPORTAGEM LOCAL

Muitas cidades em uma só. Uma cidade de poucos para poucos. Uma metrópole que assusta, mas fascina; que estimula, mas atrapalha. Uma cidade em que o desafio de crescer é vivenciado por todos, todos os dias. Uma cidade para ser enfrentada.
Essas foram algumas das muitas definições da cidade de São Paulo que surgiram ao longo das duas horas que durou o primeiro encontro do ciclo "A Vida na Metrópole", promovido pela Folha a propósito dos 450 anos da capital.
O debate, que teve como tema "Crescer em São Paulo", ocorreu na noite de segunda-feira, no auditório do Museu Brasileiro de Escultura, e reuniu Alexandre Youssef, da Coordenadoria da Juventude da Prefeitura de São Paulo; Braz Rodrigues Nogueira, diretor da Escola Municipal Presidente Campos Salles, que atende a favela Heliópolis; Ferréz, morador de Capão Redondo (zona sul) e autor dos livros "Capão Pecado" e "Manual Prático do Ódio"; Flávia Schilling, professora-doutora de sociologia da Educação da Universidade de São Paulo; Rosely Sayão, psicóloga, consultora em educação e colunista da Folha. A coordenação foi de João Batista Natali, repórter do jornal.
Pelas regras estabelecidas para o evento, os debatedores apresentaram suas idéias a propósito do tema, depois responderam a perguntas formuladas pela platéia (integrada por leitores do jornal que se inscreveram previamente) e também debateram entre si.

Raízes aéreas
Em sua intervenção, a professora Flávia Schilling apresentou seu conceito de "raízes aéreas" para uma cidade em que é penoso se fixar: "É difícil criar raízes numa cidade com o solo duro, como São Paulo. Todos nós nos desenvolvemos para ter, como certos tipos de plantas, o que chamo de raízes aéreas. Para se deslocar, estar em outros lugares, entrar em contato com coisas inimagináveis".
Ela afirmou que antes, porém, é preciso estabelecer o seguinte: "Crescer é construir a cidade, e não há só uma forma de crescer porque não há só uma São Paulo". Ou seja, muitas cidades que compõem um cenário urbano partido, "quebrado pela desigualdade e pela injustiça". "Muitos adoram viver aqui, outros odeiam. É difícil crescer aqui, assim como é difícil ser jovem, adulto ou velho."
Rosely Sayão fez questão de declarar logo de cara: "Eu amo São Paulo". Mas reconheceu que esta é uma cidade que tanto estimula quanto atrapalha o crescimento. Um dos motivos por ela citado: o espaço público, "fundamental para a convivência", é muito pouco apropriado em São Paulo. "Definitivamente, aqui, lugar de criança não é na rua."
Para a colunista da Folha, existe uma atitude disseminada na sociedade segundo a qual todos agem como se não tivessem compromisso com o espaço público. "E quando alguém se compromete, cuida de um local público, parece estranho. De qualquer maneira, não posso afirmar que seja diferente crescer em São Paulo ou em outro lugar. Acho que a cidade de São Paulo é representativa do que seja crescer hoje em qualquer lugar do mundo. Cada vez mais as pessoas se estranham e a liberdade é sempre individual."
A escola que Braz Rodrigues Nogueira dirige fica na favela Heliópolis, a maior de São Paulo, com cerca de 100 mil habitantes e assunto recorrente no noticiário policial. Com base nessa experiência e dizendo-se um "militante da educação", ele lançou a seguinte questão: "Quase 100% das crianças de São Paulo estão estudando. Mas qual é a escola que a cidade oferece aos alunos das classes populares? Os Poderes Legislativo e Executivo não têm como foco esses alunos. Há uma sabotagem educacional".
Como exemplo dessa "sabotagem" ele citou o "trânsito continuado" de professores da rede municipal de ensino, que "não criam vínculos com os alunos". Para Nogueira, a rede pública vive a realidade de aulas escassas e ausência de professores, e, conforme afirma, as mudanças necessárias só irão ocorrer quando forem uma demanda da sociedade: "A sociedade é que deve defender os interesses dos alunos".
Braz Nogueira afirmou que sua experiência na favela de Heliópolis o fez aprender "mais do que nas faculdades" e que "não se pode ter medo para se relacionar com alguém", porque "não é possível dividir a sociedade entre mocinhos e bandidos, pois há bandidos entre os mocinhos e mocinhos entre os bandidos". Segundo ele, "os verdadeiros traficantes então bem longe de Heliópolis".
O escritor Ferréz, cujos livros têm como pano de fundo a realidade violenta e conflagrada da zona sul, lançou logo uma provocação: "Acho que a Folha foi xarope em me convidar para esse debate sobre crescer em São Paulo, porque na periferia acontece exatamente o contrário".

Elite envergonhada
Segundo Ferréz, a população dos bairros periféricos é constantemente deslocada para mais longe: "Primeiro foi Santo Amaro, de lá para o Valo Velho, depois Capão Redondo, para locais sempre mais distantes e onde dava para pagar aluguel. A elite tem vergonha da gente e vai jogando cada vez mais longe. Por isso estamos isolados, não participamos da vida econômica e cultural da cidade. Na periferia o jovem não tem absolutamente nada pra fazer e eu tenho amigos da minha idade [ele está com 27 anos] que nunca foram ao centro da cidade".
Alexandre Youssef, que coordena as ações da prefeitura voltadas para a juventude, é da seguinte opinião: "Crescer em São Paulo é crescer na diversidade e na adversidade, enfrentar as diferenças. A primeira dessas diferenças é o abismo social. A falta de oportunidade ao jovem marca seu crescimento. Por isso, na maioria das vezes, o sonho de vida deve ser trocado por uma estratégia de sobrevivência que, em geral, leva a caminhos complicados".
Para Youssef, há que se considerar um outro tipo de divisão: "É o abismo da linguagem. Não existe respeito à expressão diferente do jovem. A sociedade é cruel e preconceituosa em relação a suas atividades produtivas. Acha que o jovem não quer fazer nada, mas ignora que ele produz e se expressa, seja através do hip hop, de associações de skatistas, ONGs ecológicas. Isso demonstra que o jovem encontra jeitos diferentes de crescer na adversidade".


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