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DANUZA LEÃO
Sem ilusões
Mas quando o prédio ficou pronto, se esqueceu de que ele, tão importante durante uma temporada, existia
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UM DIA ELA comprou um apartamento na planta. Ficava
horas rabiscando se o quarto
ia ter dez centímetros a mais para
lá ou para cá, se a cozinha ia ser de
fórmica ou de tijolo aparente, essas
bobagens.
Quando as paredes subiram, ela
visitava a obra pelo menos três vezes
por semana. Ficou tudo como ela
queria, mas o que lhe deu mais prazer foram os banheiros. Conseguiu
encontrar uns azulejos pintados,
mas os desenhos precisavam casar.
Deu sorte: havia um operário magrinho, humilde e muito paciente. Ele
usava calças e camisas velhas; camisas, não camisetas, certamente
herdadas, e calçava tamancos. Dia
sim dia não ela ia verificar o andamento da obra e saía encantada; tudo estava exatamente como ela havia imaginado.
Quando o apartamento ficou
pronto, foi aquela festa: os móveis
foram para seus lugares, as roupas
arrumadas nos armários, os quadros
pendurados nas paredes, tudo como
ela havia sonhado, uma felicidade.
Na frente do prédio havia um jardim, e numa tarde de domingo,
quando levou o cachorro para passear, viu um homem sentado num
banco. "Eu conheço essa cara", ela
pensou, mas não conseguia lembrar
de onde. Ele estava sozinho, vestido
modestamente, e não a viu; olhava,
com a maior atenção, para o prédio
onde ela morava.
Ela andou, deu voltas, mas pensando no homem, que continuava
tranqüilamente sentado, olhando.
Foi quando caiu a ficha.
Era ele, o azulejeiro com quem
ela conviveu durante tanto tempo;
não chegaram nem a fazer uma
camaradagem -até porque ele
era muito calado e respeitoso-,
mas quando duas pessoas se vêem
a cada dois dias, alguma relação se
estabelece, é claro. Mas quando o
prédio ficou pronto, ela se esqueceu
de que ele -tão importante na sua
vida durante uma boa temporada-
existia.
Mas ali estava ele, provavelmente
já trabalhando em outra obra; naquela tarde de domingo em que estava de folga, foi, sozinho, sentar
num banco de jardim para olhar o
prédio que havia ajudado a construir
e onde jamais teria a chance de entrar. Se chegasse muito perto da entrada, o porteiro talvez chamasse a
polícia.
Ela ficou mal; não era o caso de
chegar perto dele, estender a mão,
perguntar por onde tinha andado,
pois já sabia: colocando azulejos em
outros banheiros de outros prédios
nos quais, depois que ficassem prontos, também jamais entraria. Ficou
pensando: o que é que ele estava fazendo ali no seu único dia de folga da
semana, quando poderia estar num
cinema, tomando uma cerveja com
um amigo ou dando um mergulho
no mar?
E entendeu: ele foi ver sua obra
concluída, com o orgulho que tem
qualquer trabalhador -que seja um
artista, um operário da construção
civil ou um intelectual- de ver seu
trabalho pronto e bem feito.
Ela sentiu ali toda a injustiça
do mundo; não era o caso de convidá-lo para subir, sentar no seu sofá
de plumas, oferecer um refrigerante
e mostrar a casa pronta. Não podia
também passar por ele e dizer "oi,
tudo bem, o que você está fazendo
por aqui?", e ficar tudo por isso
mesmo.
Fez o pior: fingiu que não o tinha
visto, e sentiu o quanto esse mundo
não vale nada.
danuza.leao@uol.com.br
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