São Paulo, segunda-feira, 04 de janeiro de 2010

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MOACYR SCLIAR

A vida secreta de Drummond


O sonho do poeta era ter um médico que lhe receitasse lentes de contato. Mas isso jamais aconteceria


Reformada, a estátua do poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), na praia de Copacabana (zona sul do Rio), iniciará 2010 com visual renovado e a expectativa de deixar no passado as oito depredações sofridas desde sua inauguração, em 2002. Como vem acontecendo nesses sete anos, a escultura de bronze, assinada pelo artista mineiro Leo Santana, recebeu de volta seus óculos, parte mais frágil da estrutura e, consequentemente, mais exposta. A diferença, desta vez, é que a nova reforma veio acompanhada pela instalação de uma câmera de vigilância, para tentar inibir os atos de vandalismo.
Cotidiano, 29 de dezembro de 2009

AGORA que há uma câmera de vigilância, isto provavelmente não mais acontecerá, mas houve vezes em que, no meio de uma noite chuvosa, o poeta levantava de seu banco, na praia de Copacabana e saía a caminhar, sempre com dificuldade -articulações de idosos não se movem com muita facilidade, particularmente quando são feitas de bronze. E o destino era sempre o mesmo: o consultório de um oftalmologista, o doutor José, que sofria de insônia e, às vezes, atendia vinte e quatro horas sem parar.
Drummond chegava lá, em geral coxeando, o que levava o médico a perguntar-lhe o que havia sucedido. O poeta hesitava e respondia: -"No meio do caminho tinha uma pedra/ tinha uma pedra no meio do caminho/ tinha uma pedra/ no meio do caminho tinha uma pedra." -Parece que você está se repetindo - observava o doutor José, enfadado. -O que não me parece necessário. Além disso, que importância tinha essa tal de pedra no meio de seu caminho?
-É que eu tropecei nela. Na pedra que estava no meio do caminho. E por isso estou coxeando. Ou você pensa que articulações de bronze resistem a tudo? -Sei que não. Mas me diga: o que, afinal, o traz a este consultório de oftalmologia? -Exatamente o problema que me fez tropeçar na pedra: eu não enxergo bem. -Ah, é? E por que você não usa óculos?
-Eu uso. Só que me roubaram. Isso já aconteceu várias vezes. Os caras aproveitam o fato de eu ser de bronze para levar os óculos. -Ah, entendi. E você quer que eu lhe atenda, é isso? -É. -Muito bem. Você é cliente particular ou tem algum convênio? O poeta era obrigado a admitir que não se enquadrava em nenhuma das duas categorias:
-Você sabe, "quando nasci, um anjo torto/ desses que vivem na sombra/ disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida." Fiquei gauche, fiquei deslocado. Só posso ser atendido pelo SUS. O médico não atendia pelo SUS, muito menos os gauches, os deslocados. "E agora, José?", suspirava o poeta. Inutilmente: era uma pergunta para a qual o médico não teria resposta.
O sonho de Carlos Drummond era ter um médico que lhe receitasse lentes de contato. Mas isso jamais aconteceria. E assim, no silêncio da noite chuvosa, ele voltava para o seu banco, na praia de Copacabana, esperando por novos óculos e por um mundo melhor.


MOACYR SCLIAR escreve nesta página, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha. moacyr.scliar@uol.com.br


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