São Paulo, quinta-feira, 04 de março de 2010

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PASQUALE CIPRO NETO

O ato de trotar


Pois é aí que me ponho a pensar. O uso de "trote" com o significado de "tentativa de ridicularização" viria de quê?

UMA DAS COISAS que não mudam no Brasil é a imbecil, atrasada e subdesenvolvida "tradição" de humilhar, ferir ou matar pessoas cujo crime é a aprovação no vestibular, especialmente se essa aprovação se dá num dos cursos mais disputados. Refiro-me ao infame "trote", palavra que o "Houaiss" define assim: "1. Andadura de equídeos; 2. Atitude, manifestação ou tentativa de ridicularização; troça, zombaria; 2.1. Tal manifestação por parte de pessoa mascarada, no carnaval; 2.2. Essa atitude tomada ao telefone, sem identificação do trotista; 2.3. Tentativa de ridicularizar calouros, por parte dos veteranos".
Quando se procura a etimologia, o dicionário se limita a dar esta informação: "Regr. de trotar". Quem não é especialista precisa recorrer à tabela de símbolos e abreviaturas, em que se fica sabendo que "Regr." significa "regressivo". Então... Então é preciso recorrer novamente ao dicionário: "Diz-se de ou palavra formada por derivação regressiva". A vida não melhorou, não é?
Bem, antes de vermos o que é a tal "derivação regressiva", é preciso deixar claro que o procedimento do "Houaiss" (e dos demais dicionários, que, de modo geral, agem da mesma maneira) é absolutamente adequado. Os dicionários precisam, sim, dar o passo a passo.
E o que é, então, a derivação regressiva? Pense comigo: o ato de narrar é "narração"; o de transferir é "transferência"; o de julgar é "julgamento". O leitor notou que os substantivos citados, que designam o "ato de", resultam do acréscimo de um sufixo ao verbo ("-ão", "-ência" e "-mento", respectivamente). E o ato de combater? É "combate", que não resulta do acréscimo de algum sufixo; resulta, sim, da "eliminação de (suposto) sufixo" ("Aulete"). O (suposto) sufixo eliminado é o de "combater", verbo do qual deriva a palavra "combate". É essa (ufa!) a tal da derivação regressiva.
Posto isso e já que "trote" resulta de derivação regressiva de "trotar", vamos à definição de "trotar", uai! Lá está: "1. Andar a trote (a cavalgadura); 2. Cavalgar a trote; 3. Andar imitando o trote de cavalo; 4. Passar trote em, troçar de; zombar; 4. Submeter (calouro) a trote". Quando se vai para a etimologia, a obra informa que o termo vem do "antigo alto-alemão trottôn ("correr'), provavelmente pelo francês trotter ("fazer o cavalo trotar")".
Pois é aí que me ponho a pensar. O uso de "trote" com o significado de "tentativa de ridicularização" etc. viria de quê? Do fato de que é fácil submeter o cavalo à vontade de seu "piloto" e fazê-lo ir aqui e ali? Sabe Deus! Seja como for, parece que o significado certamente tem relação com o mundo dos bichos. Epa! Bichos? Para evitar o duplo sentido, é melhor trocar "bichos" por animais. Xi! O duplo sentido continua. Então vamos trocar "animais" por "cavalgaduras". Xi! Parece que não adiantou nada.
O pior é que, terminada a tortura, o bicho é aceito no mundo dos... Sei lá que mundo é esse. Sei que é um mundo que me lembra muito o memorável texto "O Vergalho" (capítulo 68 do mais do que obrigatório romance "Memórias Póstumas de Brás Cubas", do genial, atual e eterno Machado de Assis).
Sei também que é um mundo que forma médicos (atenção: não há vírgula aqui, ou seja, a oração é restritiva, o que significa que não estou afirmando que só forma médicos que...) que não conhecem os sintomas de doenças elementares (foram os CRMs que apontaram isso no ano passado), engenheiros (a mesma atenção!) que derrubam pontes (foi o Crea que disse isso no último acidente no Rodoanel paulista) e bacharéis em direito (atenção novamente!) que não passam na OAB. E viva o Brasil! É isso.

inculta@uol.com.br


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