São Paulo, domingo, 04 de maio de 2008

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GILBERTO DIMENSTEIN

O professor dos burros


Ao punir os alunos com a repetência, a mensagem que a escola transmite à criança é: "A culpa pelo fracasso é sua"

A REPERCUSSÃO PROVOCADA pelo comentário sobre a suposta baixa inteligência dos baianos, feito na terça-feira pelo coordenador do curso de medicina da UFBA (Universidade Federal da Bahia), Antônio Dantas, não seria tão grande se as vítimas do preconceito não fossem de classes média e alta.
Quando lhe perguntaram por que as notas dos estudantes de medicina tinham sido tão ruins nos testes nacionais, o professor foi procurar explicação na genética e jogou a culpa no QI da população local. Não bastasse isso, ainda arrematou: "O baiano toca berimbau porque só tem uma corda. Se tivesse mais cordas, não conseguiria".
Em resumo, a escola vai mal, mas seria em razão da escassa inteligência dos alunos, muitos dos quais da elite baiana. Esse tipo de ofensa é feito cotidianamente a alunos pobres, na prática chamados de burros, mas quase ninguém se escandaliza.

 

Na quarta-feira passada, a Unesco divulgou um ranking mundial de qualidade de ensino em que o Brasil ficou abaixo de países como a Bolívia e o Paraguai. Isso porque, entre outras razões, apenas 53,8% de nossas crianças conseguem completar o ensino fundamental.
Explica-se a evasão não só por motivos econômicos -a entrada das crianças precocemente no mercado de trabalho-, mas devido à repetência. De tanto ser tachado de incompetente, o estudante, humilhado, vai embora, não vê razão em ficar se torturando numa sala de aula onde não consegue aprender.
Na primeira série do ensino fundamental, quase um terço dos alunos repete o ano. Ao puni-los com a repetência, a mensagem transmitida pela escola à criança é a seguinte: "A culpa pelo fracasso é sua". Não importa a obviedade do fato de que, se tanta gente não aprende há tanto tempo, existe algo de errado no sistema -mas muita gente fica com a "teoria do berimbau", do professor Dantas, preferindo culpar o aluno.
 

Para comparar, note que, na rede das escolas particulares da cidade de São Paulo, a repetência atinge 2% dos alunos; nas regiões mais ricas, como Pinheiros, não passa de 1%.
A explicação é simples para a taxa paulistana: os pais mais ricos e informados não aceitam a idéia de que seus filhos sejam burros e não possam aprender.
Exigem professores de qualidade -aliás, jamais aceitariam o absenteísmo docente da rede pública e sabem que contarão com programas de reforço, além das mais diversas atividades extracurriculares. Quando a recuperação regular não funciona, apelam para aulas particulares, psicólogos, psicopedagogos e, em certos casos, à ajuda médica.
Fazem isso até que, mais cedo ou mais tarde, o jovem descubra algum talento, entre numa faculdade e ganhe uma habilidade -sabemos que muitos dos crônicos alunos relapsos eram apenas vítimas do excesso de talento, incompreendido pelo sistema escolar.
 

Uma das mais interessantes experiências educacionais que conheço no Brasil ocorre em Taboão da Serra, um município pobre da Grande São Paulo. É uma magnífica prova do preço da negligência. Lá, eles estimulam os professores a visitar a casa dos alunos para estabelecer uma relação entre as famílias e as escolas. Com as visitas, os professores puderam entender melhor os problemas de seus estudantes e encontrar soluções. Soluções como encaminhar ao médico uma criança que parece desatenta ao descobrir que ela não presta atenção às aulas por causa, por exemplo, da visão ruim ou do excesso de cera no ouvido.
Além de ter provocado uma série de mudanças de atitude nos alunos, a experiência surtiu efeito nas notas. Numa escala de 0 a 100, os alunos visitados em casa pelos professores tiveram nota em torno de 70 em português e matemática -a média é parecida entre os da segunda e os da quarta séries. Entre os não visitados, a notas oscilam de 40 a 50 pontos. Bastou uma visita, depois transformada em alguma providência simples, para que alguns desses alunos não mais se sentissem burros.
 

O professor Dantas está apanhando menos por ter atacado os baianos em geral com um preconceito estúpido do que por ter feito a elite sentir-se ofendida ao ver seus filhos chamados de burros -afinal, quem vai para uma escola pública de medicina dificilmente vem de uma escola pública, exceto se o ingresso tiver ocorrido pelo sistema de cotas.
 

PS - Detalhei mais em meu site (www.dimenstein.com.br) a experiência de Taboão da Serra, onde se desenvolve um projeto de integração escola e comunidade baseado em Anísio Teixeira, para quem educador de verdade é aquele que sempre acredita que todo aluno tem um talento a ser descoberto -o professor deveria ser um administrador de curiosidades. Anísio foi a nossa maior inteligência pedagógica -nenhum brasileiro me influenciou tanto sobre temas educacionais. Há muito tempo ele dizia que os meios de comunicação moldariam a aprendizagem. Inventou uma escola (escola parque) em que saber e fazer se fundiam num único lugar. Pregava que, sem educação, o desenvolvimento econômico, político e social brasileiro estaria comprometido, antecipando-se em mais de 70 anos ao discurso que só agora vira consenso. Parece até ironia que ele e Antônio Dantas sejam conterrâneos.

gdimen@uol.com.br


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