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HISTÓRIA
No século 16, vereador já se envolvia em crime contra o patrimônio público
São Paulo convive com "Viscomes" desde 1560
JOSÉ ROBERTO DE TOLEDO
da Reportagem Local
Não é de hoje que São Paulo tem
problemas com seus vereadores e
funcionários municipais. Nem de
ontem. Os registros históricos
mostram que praticamente desde
a criação da Câmara, em 1560, a
convivência da cidade com seus
oficiais tem sido problemática.
Já no século 16 os vereadores não
gostavam de comparecer às sessões do Conselho (que, de semanais, passaram a quinzenais e, depois, a mensais), se envolviam em
crimes contra o patrimônio público e planejavam obras incompatíveis com as finanças municipais.
Mesmo assim, passaram-se 439
anos para que o primeiro vereador
fosse cassado, honra histórica que
coube a Vicente Viscome.
Em seu "São Paulo nos Primeiros
Anos", Affonso d'Escragnolle Taunay descreve o cotidiano da então
vila de São Paulo do Piratininga,
baseado principalmente nas atas e
no registro geral de sua Câmara.
De tão mal redigidos, esses documentos "nem parecem estar em
português", relata Taunay. O historiador reclama da grafia extravagante das palavras, da confusão de
conceitos e da falta de pontuação.
De fato, é comum encontrar expressões como "calamdrairo" (calendário) e "ingrezes" (ingleses).
A falta de domínio do português,
mesmo pela elite, é compreensível
porque o idioma predominante
até meados do século 18 era a "língua geral", derivada do tupi. Uma
decorrência de a maior parte da
população ser índia ou mameluca.
Além disso, tratava-se de uma vila isolada do mundo pelo oceano
Atlântico e do resto do Brasil pela
serra de Paranapiacaba. Seu alheamento era tão grande que, por
quase dois anos, São Paulo contava
seus dias diferentemente da Corte.
O "calamdrairo" gregoriano só
entrou em vigor na vila em 21 de
outubro de 1584, mas já era aplicado na Europa desde 1582.
Na hora de implantá-lo, os vereadores deixaram sua marca e registraram o nome do papa Gregório
13 como "São Paulo Gregório 3º".
Se a ignorância é desculpável, a
desonestidade não. O descaso com
os bens públicos chegava ao cúmulo de, segundo Taunay, um ex-vereador chamado Antonio Fernandes retirar uma das portas do muro de proteção da vila e vendê-la,
por 250 réis, a André de Burgos.
O máximo que aconteceu ao ex-conselheiro foi ser intimado a restituir a porta e o portal, sob pena de
apreensão e multa de 200 réis -o
que não se sabe se ele fez.
Histórias de impunidade eram
comuns. Em 1575, Domingos Roiz
foi intimado a tapar buracos que
havia feito no muro protetor da cidade. Diante da demora, a própria
Câmara acabou executando o serviço e, depois, foi cobrá-lo.
Candidamente, Roiz explicou
que, sem o buraco, sua mulher e as
escravas precisariam dar enorme
volta para ir à roça. E, em petição,
requereu a reabertura do buraco.
O pedido foi negado, mas ele foi
absolvido de qualquer pagamento.
Uma das razões da impunidade
era a ausência de polícia e de prisão. Só naquele ano é que o Paço
Municipal começou a ser erguido.
Nele funcionariam lado a lado
-o que poderia ser muito prático
hoje- a sala do Conselho e a cadeia. Mas o edifício já começou
complicado. Aquele que poderia
ser o patrono dos empreiteiros
paulistas, Alvaro Annes, parou as
obras antes de cobrir as paredes de
taipa com sapé. Só concluiria o serviço após receber pelas paredes.
O Paço custou 3 mil réis, mas, na
hora de recebê-lo, a comissão instituída para inspecioná-lo mandou
que o empreiteiro colocasse mais
duas fileiras de sapé para que não
chovesse dentro do prédio.
Pouco adiantou tal cuidado: menos de quatro anos depois o procurador da vila reclamava que chovia
muito dentro do prédio. A deterioração continuou e, em 1583, a cumeeira da cadeia desabou.
Os vereadores empossados no
ano seguinte culparam os antecessores. Após meses de confusão, tudo ficou por isso mesmo.
Os oficiais encomendaram, então, a primeira obra faraônica: um
sobrado. A cadeia ficaria embaixo
e o conselho, no andar superior.
Um mês depois, voltaram atrás e
optaram por uma solução mais
compatível com as verbas disponíveis: reformar o velho Paço.
Falta de recursos, aliás, era um
problema constante para os oficiais. Muitas vezes, eram obrigados a pagar por obras públicas em
gado, pano e até palha.
Um deles, porém, sabia como ganhar dinheiro. Deportado de Portugal, Fructuoso da Costa tinha ido
à capitania do Espírito Santo. De
lá, fugiu para São Paulo, onde acabou tabelião e escrivão da Câmara.
Dono da única arca existente na
vila, aceitou vendê-la ao Conselho
para servir de arquivo pelo caro
preço de 900 réis. Antes de entregá-la, arrancou a fechadura. E depois vendeu-a à Câmara por 500
réis. Tantas fez Costa que, em 1579,
foi condenado pela Câmara, mas
fugiu. Tempos depois, avisado pelo padre Anchieta para não dormir
em casa naquela noite, não ouviu o
conselho e acabou assassinado.
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