São Paulo, Domingo, 04 de Julho de 1999
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HISTÓRIA
No século 16, vereador já se envolvia em crime contra o patrimônio público
São Paulo convive com "Viscomes" desde 1560

JOSÉ ROBERTO DE TOLEDO
da Reportagem Local

Não é de hoje que São Paulo tem problemas com seus vereadores e funcionários municipais. Nem de ontem. Os registros históricos mostram que praticamente desde a criação da Câmara, em 1560, a convivência da cidade com seus oficiais tem sido problemática.
Já no século 16 os vereadores não gostavam de comparecer às sessões do Conselho (que, de semanais, passaram a quinzenais e, depois, a mensais), se envolviam em crimes contra o patrimônio público e planejavam obras incompatíveis com as finanças municipais.
Mesmo assim, passaram-se 439 anos para que o primeiro vereador fosse cassado, honra histórica que coube a Vicente Viscome.
Em seu "São Paulo nos Primeiros Anos", Affonso d'Escragnolle Taunay descreve o cotidiano da então vila de São Paulo do Piratininga, baseado principalmente nas atas e no registro geral de sua Câmara.
De tão mal redigidos, esses documentos "nem parecem estar em português", relata Taunay. O historiador reclama da grafia extravagante das palavras, da confusão de conceitos e da falta de pontuação.
De fato, é comum encontrar expressões como "calamdrairo" (calendário) e "ingrezes" (ingleses).
A falta de domínio do português, mesmo pela elite, é compreensível porque o idioma predominante até meados do século 18 era a "língua geral", derivada do tupi. Uma decorrência de a maior parte da população ser índia ou mameluca.
Além disso, tratava-se de uma vila isolada do mundo pelo oceano Atlântico e do resto do Brasil pela serra de Paranapiacaba. Seu alheamento era tão grande que, por quase dois anos, São Paulo contava seus dias diferentemente da Corte.
O "calamdrairo" gregoriano só entrou em vigor na vila em 21 de outubro de 1584, mas já era aplicado na Europa desde 1582.
Na hora de implantá-lo, os vereadores deixaram sua marca e registraram o nome do papa Gregório 13 como "São Paulo Gregório 3º".
Se a ignorância é desculpável, a desonestidade não. O descaso com os bens públicos chegava ao cúmulo de, segundo Taunay, um ex-vereador chamado Antonio Fernandes retirar uma das portas do muro de proteção da vila e vendê-la, por 250 réis, a André de Burgos.
O máximo que aconteceu ao ex-conselheiro foi ser intimado a restituir a porta e o portal, sob pena de apreensão e multa de 200 réis -o que não se sabe se ele fez.
Histórias de impunidade eram comuns. Em 1575, Domingos Roiz foi intimado a tapar buracos que havia feito no muro protetor da cidade. Diante da demora, a própria Câmara acabou executando o serviço e, depois, foi cobrá-lo.
Candidamente, Roiz explicou que, sem o buraco, sua mulher e as escravas precisariam dar enorme volta para ir à roça. E, em petição, requereu a reabertura do buraco. O pedido foi negado, mas ele foi absolvido de qualquer pagamento.
Uma das razões da impunidade era a ausência de polícia e de prisão. Só naquele ano é que o Paço Municipal começou a ser erguido.
Nele funcionariam lado a lado -o que poderia ser muito prático hoje- a sala do Conselho e a cadeia. Mas o edifício já começou complicado. Aquele que poderia ser o patrono dos empreiteiros paulistas, Alvaro Annes, parou as obras antes de cobrir as paredes de taipa com sapé. Só concluiria o serviço após receber pelas paredes.
O Paço custou 3 mil réis, mas, na hora de recebê-lo, a comissão instituída para inspecioná-lo mandou que o empreiteiro colocasse mais duas fileiras de sapé para que não chovesse dentro do prédio.
Pouco adiantou tal cuidado: menos de quatro anos depois o procurador da vila reclamava que chovia muito dentro do prédio. A deterioração continuou e, em 1583, a cumeeira da cadeia desabou.
Os vereadores empossados no ano seguinte culparam os antecessores. Após meses de confusão, tudo ficou por isso mesmo.
Os oficiais encomendaram, então, a primeira obra faraônica: um sobrado. A cadeia ficaria embaixo e o conselho, no andar superior.
Um mês depois, voltaram atrás e optaram por uma solução mais compatível com as verbas disponíveis: reformar o velho Paço.
Falta de recursos, aliás, era um problema constante para os oficiais. Muitas vezes, eram obrigados a pagar por obras públicas em gado, pano e até palha.
Um deles, porém, sabia como ganhar dinheiro. Deportado de Portugal, Fructuoso da Costa tinha ido à capitania do Espírito Santo. De lá, fugiu para São Paulo, onde acabou tabelião e escrivão da Câmara.
Dono da única arca existente na vila, aceitou vendê-la ao Conselho para servir de arquivo pelo caro preço de 900 réis. Antes de entregá-la, arrancou a fechadura. E depois vendeu-a à Câmara por 500 réis. Tantas fez Costa que, em 1579, foi condenado pela Câmara, mas fugiu. Tempos depois, avisado pelo padre Anchieta para não dormir em casa naquela noite, não ouviu o conselho e acabou assassinado.



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