São Paulo, domingo, 04 de agosto de 2002

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INDÚSTRIA DO FUMO

Ex-funcionário, que provou cigarros durante 10 anos, teve várias doenças; para empresa, ação é "aventura jurídica"

Testador quer indenização de R$ 13,5 mi

Ana Carolina Fernandes/Folha Imagem
Marcos Ribeiro da Costa, que provou cerca de 40 cigarros por dia durante 10 anos, quer indenização de R$ 13,5 mi da Souza Cruz


MARIO CESAR CARVALHO
ENVIADO ESPECIAL AO RIO

Durante dez anos, quatro vezes por semana, duas vezes por dia, em sessões de duas horas, o advogado Marcos Ribeiro da Costa exerceu dentro da Souza Cruz, no Rio, uma função que não existe no Código Brasileiro de Ocupações, a lista de profissões que o governo considera legais: foi testador de cigarros.
Em jejum, para não afetar o paladar, entrava às 7h numa sala de 3 m por 6 m e, com outras nove pessoas, Marcos da Costa avaliava cigarros, como conta.
Dava duas ou três tragadas e anotava se era suave ou forte, se causava irritação ou não, em suma, suas qualidades e defeitos.
Às 9h, quando acabava a sessão, ele estima que havia experimentado 20 cigarros. Ou 40 por dia.
Dois pneumotórax, uma demissão e uma sequência de problemas psiquiátricos depois, Costa quer o troco. Foi à Justiça atrás de uma indenização que pode chegar a R$ 13,5 milhões.
"Fui usado como um rato de laboratório", diz ele, que vive com uma pensão da Previdência após diagnosticarem que tem compulsão, alta ansiedade e depressão. Laudos médicos associam seus problemas ao fumo.
A Souza Cruz diz que seu antigo funcionário fez tudo voluntariamente, que suas doenças não estão relacionadas com o cigarro e que a ação não passa de uma "aventura jurídica".

Cobaia humana
Costa, 42, entrou na Souza Cruz em 1976, aos 15 anos, como mensageiro do departamento de proteção industrial.
Ao completar 18, foi convidado para fazer uma trabalho adicional: provar cigarros. Após vários testes, foi aceito. Tinha sensibilidade para a tarefa.
Até então, era um "fumante eventual", como diz. "Até terminar o científico [hoje chamado de ciclo de ensino médio], eu não andava com cigarro. Comecei a fumar mesmo quando me tornei provador. Aí virei homem."
Em cada sessão como provador, ganhava 4,6% de um salário mínimo (o equivalente hoje a R$ 9,20). "Dava uns 5% do salário de mensageiro. Era irrisório. Eu só aceitei porque tinha medo de ser demitido se recusasse a proposta."
Os problemas começaram quatro ou cinco anos depois de tornar-se provador.
"Tinha tanta fumaça na salinha e eu fumava tanto que passava mal. Saía tonto, com ânsia de vômito. Ia ao serviço médico e tomava um remedinho para cortar o enjôo, para tirar a dor de cabeça. O médico dizia que aquilo não fazia mal."
Em 1988, nove anos depois de ter-se iniciado na nova função, estourou o primeiro problema de saúde mais sério: um pneumotórax, ou seja, o acúmulo de ar na pleura, a membrana que envolve os pulmões.
Costa passou por uma cirurgia, mas o médico da Souza Cruz, segundo ele, não recomendou que deixasse a função de provador nem que parasse de fumar.
Só após o segundo pneumotórax, em 1989, é que Costa deixou de fazer parte do que a Souza Cruz chama de "painel de fumo".
Também parou de fumar, seguindo determinação do médico que o tratou.
Em 1991, dois anos depois de deixar o fumo, começaram os problemas psiquiátricos.
Primeiro, Costa diz que começou a beber cerveja, chope e uísque. Pior: não conseguia parar, segundo ele.
"Eu, que nunca bebi, estava virando alcoólatra", relata.
Depois do álcool, tornou-se dependente de remédios. "Qualquer coisinha e eu logo ia para o departamento médico atrás de comprimido para o estômago, para a cabeça, calmante."
Em 1991 mesmo começou um tratamento psiquiátrico, durante o qual já passou por três internações e que perdura até hoje.
O neuropsiquiatra Nelson José Almeida dos Santos, do Centro de Recuperação de Dependentes Químicos do Rio, diz que o fumo desencadeou as patologias psiquiátricas de Costa.
"Qualquer droga -e o fumo é uma droga- pode ativar quadros de compulsão e outros problemas psiquiátricos. Não sabemos exatamente que tipo de fumo ele experimentava. Eventualmente, ele pode ter testado fumo geneticamente modificado", afirma Santos.
Pode parecer teoria conspiratória falar em fumo geneticamente modificado, mas, entre o final dos anos 80 e o início dos 90, a Souza Cruz plantou um fumo chamado Y1, alterado geneticamente para elevar a dose de nicotina.
A empresa só parou de cultivar o Y1 no Brasil, que chegou aqui por meio de contrabando, quando o governo americano descobriu que o novo fumo fora feito para aumentar a dependência e o proibiu.
Em 1997, Costa teve a primeira convulsão por causa de alta ansiedade. Trabalhava à época no combate ao roubo de cigarros, vivia sob "forte estresse emocional", "tomava todo tipo de calmante", mas não conseguia mudar de função.
"Eu sabia segredos demais. Conhecia todos os contatos da Souza Cruz com militares, com secretários de Segurança", relata.
Em agosto de 1998, estimulado pelo psiquiatra, Costa aceitou voltar a trabalhar -o convívio social o ajudaria a sair da depressão. Voltou à Souza Cruz em 5 de agosto de 1998 e foi demitido.
"Fiquei em estado de choque. Comecei a chorar. A Souza Cruz era como se fosse minha família. E eu não podia ser demitido. Estava com problemas de saúde", conta. Deram-lhe para assinar um contrato particular pelo qual recebia R$ 104 mil para custear o tratamento, segundo ele.
Não o deixaram ir ao sindicato fazer a homologação.
"Disseram que era um benefício da empresa para os executivos", afirma, rindo do truque barato em que caiu.
A dúvida trabalhista foi resolvida pela Justiça, em segunda instância, em outubro do ano passado: o Tribunal Regional do Trabalho, do Rio, determinou que a Souza Cruz reintegre Costa a seu quadro de funcionários.
Ele acha pouco. Diz que sua vida acabou após a demissão, e que alguém tem de pagar por isso.


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