São Paulo, segunda-feira, 04 de setembro de 2006

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MOACYR SCLIAR

O segredo do ursinho de pelúcia

Quando eu o abraçava, era a minha mãezinha que eu estava abraçando. Era como se mamãe estivesse ali

A polícia da Colômbia apreendeu em um aeroporto 60 quilos de cocaína escondidos em brinquedos infantis que seriam enviados à Espanha, informaram nesta segunda-feira fontes oficiais. Folha Online, 14 de agosto

DE INÍCIO, o homem responsável pela carga que seria enviada à Espanha manteve-se firme. Até troçou dos policiais que o interrogavam: eu acho que vocês não estão atrás de cocaína, disse, acho que vocês estão atrás de brinquedos para se divertirem nas horas vagas. E realmente os agentes da lei estavam desconcertados. Tinham recebido a denúncia de que o homem se preparava para despachar uma grande quantidade de cocaína por avião, mas não conseguiam encontrar a droga na bagagem. Já haviam extraído o fundo da mala, removido saltos de sapatos, examinado objetos de higiene. Nada.
Mas aí um dos policiais avistou um pequeno bornal que, por alguma razão, escapara à revista. Perguntaram ao homem se o bornal era dele. Ele hesitou e disse que sim, que o bornal era seu. Um dos policiais abriu-o e extraiu dali um único objeto, um ursinho de pelúcia. A reação do homem foi extraordinária. Com um salto felino, conseguiu arrebatar o ursinho, que apertou contra o peito: - Por favor, não mexam nisto.
Prendam-me, matem-me, mas não mexam neste ursinho de pelúcia. Espantados, e, claro, desconfiados, os policiais quiseram saber a razão pela qual não podiam examinar o brinquedo. O homem começou a chorar. Chorou longamente. Por fim, ainda soluçando, contou: - Este ursinho, como vocês podem ver, é bem antigo. Tem quase a minha idade. Ganhei-o de minha mãe no dia em que completei um ano de idade. Logo depois ela faleceu. O ursinho ficou sendo para mim a própria imagem de mamãe, vocês entendem? Quando eu o abraçava, era a minha mãezinha que eu estava abraçando. Eu ia para a cama com ele, e era como se mamãe estivesse ali, a meu lado.
Assoou-se ruidosamente e continuou: - O tempo passou, tornei-me adulto, mas nunca abandonei o meu querido ursinho. Quando casei, passei a colocá-lo em nossa cama. Minha mulher não gostava disso, claro. Brigávamos seguidamente e acabamos nos separando. Ela foi para a Espanha, levando nossa filha de cinco anos. Ela... Oh, Deus.
Por um instante calou-se, emocionado. E aí continuou: - Minha filha ficou doente. Muito doente. Tem uma enfermidade grave, provavelmente mortal, segundo os médicos. Na semana passada ela me telefonou: tinha um pedido a me fazer. Queria que eu lhe levasse o ursinho, para que pudesse colocá-lo em sua cama, no hospital. "Tenho certeza de que com isso vou melhorar", disse. E é por isso que estou mandando o urso de pelúcia para a Espanha. Para atender o que pode ser o último desejo de minha filha.
Neste momento, entrava um policial trazendo um cão farejador. O animal correu para o ursinho. Que os policiais abriram e que estava cheio de envelopes plásticos com cocaína.
Cocaína, ia dizer o homem, é a única coisa que me leva de volta à infância. Não chegou, porém, a abrir a boca. Porque de um canto escuro, fitava-lhe, debochado, o garoto mentiroso que um dia ele fora. E que segurava no colo um ursinho de pelúcia.


MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha

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