São Paulo, Segunda-feira, 04 de Outubro de 1999
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DUPLA PORTA

Jorge Roberto Pagura - Sou contrário à dupla porta em setor público. O país precisa de vaga para pobre. Há de se equacionar mecanismos de financiamento.
Eles falam que destinam 10% ou 20% dos leitos para particulares e conveniados, mas todos nós que trabalhamos com medicina sabemos que é mais, porque as medicinas de grupo, os convênios e aqueles que utilizam determinados leitos hospitalares querem alta rotatividade de leitos.
A internação tem de ser feita no dia da cirurgia, e a alta, o mais rápido possível. Com isso, os 20% de leitos acabam representando 40% do número de pacientes atendidos.
A dupla porta não deve ser feita a menos que os hospitais privados também abram vagas para pacientes do SUS.
É preciso discutir novos modelos, o modelo cooperativado, o Projeto Qualis, que é o modelo privado de agentes comunitários da saúde. É preciso discutir sistemas mais flexíveis, porém, com controles rígidos.

José Aristodemo Pinotti - O governo nunca deveria ter abdicado da gestão de um hospital público. A segunda porta em hospital público é uma imoralidade. Tanto é que o Ministério Público analisou a questão e denunciou à Justiça.
Os argumentos em favor da segunda porta são falaciosos. No HC, diz-se que a segunda porta é fundamental para ajudar no custeio do hospital. Em 97, o dinheiro que entrou pela segunda porta para a Fundação Faculdade de Medicina -instituição privada que administra o hospital- equivaleu a 1,7% do orçamento global do hospital. Isso não é fundamental a ninguém. Em 98, esse valor chegou a 3%, o que também não tem significado.
Outro argumento é que a segunda porta poderia acabar com a dupla militância, ou seja, acabar com a história de o médico trabalhar em vários hospitais no mesmo dia. Cinco anos de dupla porta no HC e não houve nenhum caso de médico que, por causa da segunda porta, tenha assumido o hospital em tempo integral.

Raul Cutait - Minha preocupação não é com a dupla porta, mas com o duplo financiamento, que é importante. Se o setor público tem dificuldades para se custear, por que não abrir espaço para melhorar seu financiamento? Se no HC a experiência não foi tão importante, no Incor foi. Com a criação da Fundação Zerbini (fundação privada que administra o Incor) e com o duplo financiamento, o hospital ganhou agilidade e conseguiu se equipar melhor e atender melhor todos os seus doentes.
Existe dupla porta no Incor também. Se um paciente de convênio quer marcar ecocardiograma, marca mais rápido que pelo SUS. Está errado, mas é um problema de organização interna, que pode ser revisto. Mas isso não deve ser confundido com a possibilidade de se achar uma fonte de recurso adicional para ajudar o setor público. Será que o setor público deve prescindir do financiamento ou de recursos que podem advir do setor privado? Isso merece uma discussão bem mais aprofundada.

Carlos Alberto Paneagua Ferreira - A Casa de Saúde Santa Marcelina assinou contrato com o governo do Estado e há um ano administra o Hospital Geral do Itaim Paulista. Lá não há dupla porta porque foi proibida pela lei que criou as organizações sociais. Recebemos pelos serviços prestados ao SUS, e o restante do financiamento vem do poder público. A dupla porta poderia favorecer o financiamento, permitindo que o dinheiro vindo do Estado fosse utilizado para outras ações.

Pinotti - Mas o Itaim teria uma segunda porta. O governador mandou para a Assembléia um projeto regulamentando as organizações sociais dos cinco hospitais que entregou a instituições privadas. A Assembléia negou e proibiu a segunda porta. Isso está causando um problema sério para o Santa Marcelina. Hospital filantrópico, ao contrário do público, deve ter atendimento privado para sobreviver.

ALTERNATIVAS

Pinotti - A segunda porta deveria realmente ser substituída pelo segundo financiamento, sem o atendimento diferenciado. Há quatro alternativas que permitem isso: 1) os hospitais públicos devem cobrar dos convênios o atendimento de doentes conveniados, que normalmente procuram tratamentos complexos. Esses pacientes representam cerca de 15% nos hospitais públicos; 2) o governo deve aumentar entre 3% e 4% o orçamento para esses hospitais; 3) os recursos das fundações devem ser melhor utilizados. A Fundação Faculdade de Medicina fez uma compra totalmente desnecessária de um prédio da Febem e poderia ter usado esse dinheiro para financiar o custeio do hospital em vez de abrir segunda porta; 4) estimular a ajuda financeira por parte do terceiro setor (sociedade civil, instituições filantrópicas e privadas).
É possível melhorar o orçamento sem se utilizar da dupla porta. Não sou contra o atendimento de pacientes privados no hospital público. Todos podem ser atendidos, mas igualitariamente.

Pagura - Complementando as alternativas, uma quinta forma de duplo financiamento seria a utilização dos recursos do DPVAT (Seguro de Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Via Terrestre), que constitui uma das maiores falcatruas que existem no país. Esse dinheiro está saindo pelo ralo e poderia substituir a dupla porta.

FILANTROPIA

Ferreira - A lei das filantrópicas, que está suspensa momentaneamente, não resultou em nada para nós. A Casa de Saúde Santa Marcelina atende 92% de pacientes do SUS, muito mais do que prevê a lei. E, mesmo assim, vive com um déficit mensal de R$ 1,1 milhão por causa das tabelas aviltadas pela defasagem de preço, corroídas pela inflação.
Há inúmeras entidades consideradas filantrópicas que não praticam efetivamente a filantropia, mas que gostariam de continuar mantendo o título de filantrópicas. Outras muito sérias continuam praticando a filantropia. Achamos que o dinheiro economizado com a isenção deve ser revertido em favor daquelas instituições que querem realmente continuar fazendo filantropia, atendendo o SUS. Isso seria uma forma de tentar encaminhar o problema de uma maneira mais racional.

Pagura - Quando se faz filantropia, há de se ter primeiro a definição do que a sociedade precisa. Isso quem deve definir são as autoridades que traçam programas de saúde. Existem algumas distorções que precisam ser corrigidas. Hospitais privados que recebem isenção de alíquotas para a compra de aparelhos sofisticados, como o de ressonância magnética, deveriam ser obrigados a fornecer exames de ressonância magnética a pacientes do SUS, por exemplo.
Não se pode tirar a isenção das instituições que estão contribuindo com alta tecnologia, mas a manutenção da filantropia nesses casos teria de obedecer a regra da demanda no sistema público. É errado deixar que as próprias instituições definam como vão aplicar esse dinheiro de isenção.

Pinotti - Tenho grande preocupação em redefinir a questão da filantropia. A redefinição que foi feita por lei é pobre. Há uma emenda tramitando no Congresso que propõe outra forma de ajustar o critério de filantropia. Ela propõe que a entidade tenha um percentual de isenção igual ao que a entidade fatura do SUS. Se a entidade fatura do SUS 20% do seu orçamento em relação ao seu orçamento privado ou conveniado, tem 20% de desconto, e assim por diante. Essa é uma forma adequada de graduar a filantropia.


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