São Paulo, Segunda-feira, 04 de Outubro de 1999
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DEBATE
Proposta de emenda constitucional que associa arrecadação da Previdência à Saúde aguarda votação desde 93
Governo precisa vincular recursos à Saúde



"O PAS foi implantado em São Paulo a toque de caixa, em 14 módulos, o que impedia o controle"
Jorge Roberto Pagura

"A grande mudança vai ocorrer quando pudermos parar de gastar o grosso do dinheiro na rolagem da dívida externa"
Raul Cutait

Cutait - O conceito de filantropia deve ser avaliado, não só do ponto de vista de definição, mas basicamente de implicações. Quando se fala que isenções fazem parte de filantropia, fazem mesmo, no mundo inteiro. É um dos estímulos para que a sociedade civil assuma sua cota de responsabilidade social.
Mas não é o único e talvez nem o mais importante. O mais importante é o despertar para a participação, que pode vir da isenção, da religiosidade ou de qualquer outro estímulo. Esse é muitas vezes o primeiro passo para doações, que podem ser estimuladas por meio de leis como essas de tributação sobre heranças.
Mas existem muitas experiências de gente que doa não porque vai cair no Imposto de Renda, mas porque acredita na sua responsabilidade. O que falta é definir exatamente aquilo que pode ser considerado filantropia no nosso país e, quando se destina dinheiro à filantropia, que se criem situações nas quais auditorias sejam feitas e em que haja punições tanto para quem finge que dá como para quem finge que usa.
Quando se falava em filantropia, falava-se em caridade, voluntariado. Aí a terminologia virou benemerência. E hoje o que se usa como filantropia é, na verdade, chamado de terceiro setor.
O terceiro setor é uma força emergente sob todos os aspectos -político, econômico e de recursos humanos. O terceiro setor significa 9% do PIB americano e 7% dos empregos nos EUA. Então, ele significa a necessidade da participação social da sociedade civil, reconhecendo que o setor público nem sempre é competente para executar suas próprias propostas.
E mostrando que, a partir do momento em que o setor público se propõe a trabalhar mais as políticas, as normas de controle, e deixar para a sociedade civil executar as coisas, isso pode gerar melhores resultados em razão de cada tostão gasto.
Estamos no seguinte impasse: o setor filantrópico tem peso no dia-a-dia do atendimento à saúde. Mas ele precisa ser reavaliado, redefinido. Precisam ser melhor esclarecidas as características de uma entidade filantrópica na área da saúde. Justamente para evitar excessos que temos visto em vários dos setores sociais que se beneficiam de isenções.
O setor filantrópico deve esquecer a gratuidade, deve ter suas isenções, mas estas devem ser transformadas em atendimento para o SUS, não apenas em nível de internação, mas em nível de um atendimento mais global, atendimento ambulatorial, prevenção, reabilitação e outras áreas de atuação.

TABELA SUS

Ferreira - O reajuste da tabela não deve ocorrer de forma linear. Há alguns procedimentos que são até compensadores em uma margem de ganhos normal. Em contrapartida, temos consultas médicas que custam R$ 2,50, o que é uma vergonha nacional. É preciso fazer um estudo por técnicos do ministério. Precisamos de aumentos localizados na tabela. Não adianta dizer que ela está defasada em mais de 40% porque o governo não vai conseguir cobrir essa defasagem.

Pagura - É preciso avaliação parcimoniosa e específica da tabela. Estudo da Fipe mostrou que entre julho de 94 e maio de 99 os custos da saúde aumentaram cerca de 109%. Enquanto isso, só houve reajuste de 25% em 95 para os prestadores de serviço.
O grande problema é que 78% dos hospitais têm atendimento de menor complexidade, cuja remuneração é extremamente pequena. Algumas consultas custam R$ 2,50 e, algumas diárias de internação, R$ 7. Sabemos que um aumento linear de 30% ou 40% nessa tabela tem impacto brutal no orçamento, o que preocupa muito a equipe econômica.

Pinotti - A grande maioria dos pagamentos da tabela não cobre os custos. Acho que a tabela do SUS é uma excelente ajuda de custo para um hospital público que tenha orçamento quando ele atende uma quantidade grande de pacientes.
Eu vivi dez anos a experiência de gestão do Hospital Pérola Byington, nós nunca cobramos de um doente privado. Sempre tivemos um orçamento extremamente restrito, por questões até políticas, mas tínhamos um atendimento maciço da população. Não tínhamos a tabela diferenciada de hospitais universitários, que paga 70% a mais que a tabela do SUS, e sempre o hospital sobreviveu oferecendo um atendimento médico absolutamente correto, bem diferenciado e consensualmente bom na cidade e no Estado de São Paulo. Portanto, a tabela como está é uma ajuda de custo importantíssima para os hospitais públicos.
O que acontece é que, na história do credenciamento dos hospitais privados, não se seguiu o que deveria ter se seguido, que era credenciamento suplementar do hospital privado.
Ou seja, onde o hospital público esgotou as possibilidades de atuação, contrata-se um hospital privado. Ou onde o hospital público não tem uma determinada área de diagnóstico ou de tratamento, contrata-se um hospital privado.
Então, as tabelas têm de ser renovadas no contexto de uma renovação do critério de contratação e de convênios de hospitais.

FINANCIAMENTO

Pagura - Hoje se clama por custeios dignos na saúde. É preciso obrigar o governo a manter um investimento fixo. Nesse sentido, temos de lutar pela aprovação da PEC 169 (proposta de emenda constitucional que vincula uma porcentagem fixa da arrecadação da previdência social para a área da saúde), que desde 93 está para ser votada. Ela é extremamente importante para que a gente possa definir um critério de saúde como foi feito com a educação, mas ainda não foi votada.
Se tivesse sido posta em prática há algum tempo, com delineamento principalmente nas áreas de prevenção e programas de saúde, talvez não tivéssemos vivendo a volta de algumas epidemias.

Pinotti - Eu votei a favor da PEC 169, mas infelizmente a PEC ainda é muito tímida, porque fala em 30% do dinheiro da previdência social, e o dinheiro da previdência é manipulado pelo governo. Portanto, 30% do dinheiro da Previdência Social acaba sendo os 30% que o governo quer que seja.
A minha proposta de PEC é vincular uma porcentagem do PIB à saúde, o que seria uma forma mais fácil de controle, como é nos demais países.

Cutait - O dinheiro não está sendo adequadamente empregado, mas todos sabem que o dinheiro é curto. Existe a necessidade de criar um modelo de gestão mais ágil, e a administração pública engessa a gestão, e é aí que ocorre muito da malversação dos fundos, gerando produtividade menor.
O terceiro aspecto é a motivação do profissional de saúde. O médico brasileiro (segundo enquete feita pela Fiocruz há dois anos) reclama mais da dificuldade de se educar do que dos próprios salários e das condições de trabalho.
Programas de educação continuada têm de fazer parte do horário de trabalho inclusive. O indivíduo tem de ser estimulado a melhorar seus conhecimentos porque isso dá a ele condição melhor de resolver seus problemas do dia-a-dia.
Nós temos que aprender que tudo é questão de time. Não existem mais os médicos que resolvem tudo sozinhos. A dinâmica de trabalho tem de ser diferente. Isso passa por um modelo de gerenciamento novo e que é extremamente truncado na administração pública dentro das atuais limitações que a lei impõe.
Uma dinâmica de integração do setor público com o privado deve ser vista como forma de favorecer o melhor aproveitamento dos recursos limitados. A grande mudança vai ocorrer, na verdade, quando pudermos parar de gastar o grosso do dinheiro arrecadado na rolagem da dívida externa, que é hoje 3,5 vezes o que se gasta por ano na saúde.

GERENCIAMENTO

Cutait - O programa de saúde da família tem mostrado melhores resultados com menos investimentos. No Estado de São Paulo apareceu uma variação que foi o Projeto Qualis. Qual é a grande diferença? O fato de ter associado uma instituição ligada ao terceiro setor. É o Hospital Santa Marcelina cuidando de alguns módulos, a Fundação Zerbini, de outros, dando agilidade administrativa, agilidade de decisões, complementação de verbas, dando chance para que os médicos possam receber melhor e se dedicar integralmente à sua atividade no Qualis.
Grau de satisfação do usuário, dos profissionais e dos médicos. Isso é uma maneira prática de provar que o terceiro setor tem peso, sim, na atenção pública.
Como inserir o terceiro setor no jogo? Quais os estímulos para que a sociedade civil participe? Pode ser religioso, vontade de participação social, estímulo econômico, porque vale a pena de alguma forma, estímulo de imagem, estímulo advindo de isenções fiscais. A partir do momento que qualquer um desses for utilizado, pode ser criada uma situação nova para o setor público e para a saúde.

Pagura - As cooperativas do PAS deram maior ganho para o médico, fixaram-no nessa cooperativa, deram uma agilidade de ação. Só que faltou uma coisa fundamental, controlabilidade. Na mudança do PAS para o Sims, criamos um programa cooperativado melhor formatado, com um mecanismo de controle pré-auditado, no qual cooperativas têm autonomia, mas com uma controladoria por trás. Toda implantação de um modelo novo deve ser lenta, progressiva, com avaliação de suas deficiências.
O PAS foi implantado a toque de caixa, em 14 módulos, o que impedia o controle. Por isso tivemos de retroceder para quatro cooperativas. Na questão do terceiro setor, é preciso não incorrer no erro incorrido no PAS.

Pinotti - O PAS precisa ser analisado com muita isenção e com muita neutralidade. O PAS tem coisas boas e ruins. As coisas boas: a descentralização, o pagamento adequado e digno dos profissionais de saúde, a gratuidade das ações de saúde (não há segunda porta no PAS).
Mas a liberdade que se deu, transformando dinheiro público em dinheiro privado, gerou fraude. Parece que isso está sendo corrigido.
A outra questão que a meu ver tem que ser corrigida é que o PAS anterior recebia uma quantidade fixa de recursos pelo número de habitantes potencialmente cadastrados. E quanto mais dinheiro sobrava, maior a possibilidade de remuneração. Isso acaba estimulando a prática de menos ações de saúde, menos operações, menos remédios.


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