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PASQUALE CIPRO NETO
"Não fora o patriotismo e a enorme coragem cívica..."
Verdadeiras ou não, as
fotos do jornalista Vladimir
Herzog produziram alguns (evitáveis) estragos, a começar pela
nefanda nota do Exército. O episódio gerou o magnífico texto
"Recaídas Autoritárias", escrito
pelo eminente e lúcido professor
Paulo Sérgio Pinheiro e publicado
pela Folha em 21 de outubro.
Diz o professor : "Não fora o patriotismo e a enorme coragem cívica do cardeal emérito de São
Paulo, dom Paulo Evaristo Arns,
e do saudoso pastor...".
Ao ler o trecho (e particularmente a forma verbal "fora", do
pretérito mais-que-perfeito), lembrei-me de algumas brilhantes
propostas "pedagógicas" que volta e meia ouço e leio por aí. Uma
delas sugere que seja sumariamente eliminado de nossas escolas o ensino do mais-que-perfeito.
O argumento? Está morto, putrefato, decomposto, sepulto etc.
É inegável que, na língua do
dia-a-dia, não empregamos formas como "fizera", "permitira"
ou "chegara", mas será que isso
basta para que as escolas deixem
de lado o ensino do glorioso pretérito mais-que-perfeito?
Como discordo visceralmente
dessa e de outras propostas semelhantes (não resisto à tentação de
dizer que isso tem fortíssimo cheiro de obscurantismo), acho melhor ir direto ao ponto.
Vamos lá, pois. Primeiramente,
é preciso lembrar que, ao pé da letra, "perfeito" (que vem do latim
"perfectu") significa "feito até o
fim", "acabado", "terminado".
Um dos sentidos do elemento latino "per-" é o de "totalidade". Por
que dizemos, por exemplo, que
determinada obra de arte é perfeita? Porque não lhe falta nada.
Em "Bush derrotou Kerry", a
forma "derrotou" (do pretérito
perfeito) indica um fato totalmente concluído, ou seja, perfeito.
Em "Quando ela chegou, eu já
resolvera o problema", a forma
"resolvera" indica fato anterior
ao expresso por "chegou" (do pretérito perfeito). Não é por acaso
que "resolvera" é do mais-que-perfeito. Não custa repetir que essa forma indica fato mais velho
que o expresso pelo perfeito. Se é
mais velho que o perfeito, é mais-que-perfeito. Entendeu o porquê
do nome desse tempo verbal?
Já sei, já sei, no dia-a-dia não se
diria "resolvera"; dir-se-ia "tinha
resolvido": "Quando ela chegou,
eu já tinha (ou "havia') resolvido...". Pronto! Acabamos de "descobrir" que o pretérito mais-que-perfeito pode ser simples ou composto. E descobrimos também que
o falecido (na oralidade) é o
mais-que-perfeito simples. O
composto segue firme e forte.
Como a escola não deve limitar-se ao estudo da língua oral, convém lembrar que, na escrita, o
mais-que-perfeito simples está em
plena forma. Quer exemplos? Veja este trecho de "Budapeste", de
Chico Buarque: "...o problema
técnico (...) fora na verdade uma
denúncia anônima de bomba a
bordo. No entanto, espiando por
alto o telejornal da meia-noite, eu
já me intrigara ao reconhecer o
avião da companhia alemã...".
Agora leia este trecho de "Super-Homem, a Canção", de Gilberto Gil: "Minha porção mulher,
que até então se resguardara...".
Como se sabe, Chico Buarque de
Holanda e Gilberto Gil morreram
há 500 anos. Devagar com o
andor, moçadinha.
E onde entra a forma "fora", do
texto do professor Paulo S. Pinheiro? O que temos aí é o emprego (erudito) do mais-que-perfeito
do indicativo no lugar do imperfeito do subjuntivo. "Não fora o
patriotismo..." equivale a "Não
fosse o patriotismo...". É isso.
Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras
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