São Paulo, quinta-feira, 04 de novembro de 2004

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PASQUALE CIPRO NETO

"Não fora o patriotismo e a enorme coragem cívica..."

Verdadeiras ou não, as fotos do jornalista Vladimir Herzog produziram alguns (evitáveis) estragos, a começar pela nefanda nota do Exército. O episódio gerou o magnífico texto "Recaídas Autoritárias", escrito pelo eminente e lúcido professor Paulo Sérgio Pinheiro e publicado pela Folha em 21 de outubro.
Diz o professor : "Não fora o patriotismo e a enorme coragem cívica do cardeal emérito de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns, e do saudoso pastor...".
Ao ler o trecho (e particularmente a forma verbal "fora", do pretérito mais-que-perfeito), lembrei-me de algumas brilhantes propostas "pedagógicas" que volta e meia ouço e leio por aí. Uma delas sugere que seja sumariamente eliminado de nossas escolas o ensino do mais-que-perfeito. O argumento? Está morto, putrefato, decomposto, sepulto etc.
É inegável que, na língua do dia-a-dia, não empregamos formas como "fizera", "permitira" ou "chegara", mas será que isso basta para que as escolas deixem de lado o ensino do glorioso pretérito mais-que-perfeito?
Como discordo visceralmente dessa e de outras propostas semelhantes (não resisto à tentação de dizer que isso tem fortíssimo cheiro de obscurantismo), acho melhor ir direto ao ponto.
Vamos lá, pois. Primeiramente, é preciso lembrar que, ao pé da letra, "perfeito" (que vem do latim "perfectu") significa "feito até o fim", "acabado", "terminado". Um dos sentidos do elemento latino "per-" é o de "totalidade". Por que dizemos, por exemplo, que determinada obra de arte é perfeita? Porque não lhe falta nada.
Em "Bush derrotou Kerry", a forma "derrotou" (do pretérito perfeito) indica um fato totalmente concluído, ou seja, perfeito.
Em "Quando ela chegou, eu já resolvera o problema", a forma "resolvera" indica fato anterior ao expresso por "chegou" (do pretérito perfeito). Não é por acaso que "resolvera" é do mais-que-perfeito. Não custa repetir que essa forma indica fato mais velho que o expresso pelo perfeito. Se é mais velho que o perfeito, é mais-que-perfeito. Entendeu o porquê do nome desse tempo verbal?
Já sei, já sei, no dia-a-dia não se diria "resolvera"; dir-se-ia "tinha resolvido": "Quando ela chegou, eu já tinha (ou "havia') resolvido...". Pronto! Acabamos de "descobrir" que o pretérito mais-que-perfeito pode ser simples ou composto. E descobrimos também que o falecido (na oralidade) é o mais-que-perfeito simples. O composto segue firme e forte.
Como a escola não deve limitar-se ao estudo da língua oral, convém lembrar que, na escrita, o mais-que-perfeito simples está em plena forma. Quer exemplos? Veja este trecho de "Budapeste", de Chico Buarque: "...o problema técnico (...) fora na verdade uma denúncia anônima de bomba a bordo. No entanto, espiando por alto o telejornal da meia-noite, eu já me intrigara ao reconhecer o avião da companhia alemã...".
Agora leia este trecho de "Super-Homem, a Canção", de Gilberto Gil: "Minha porção mulher, que até então se resguardara...". Como se sabe, Chico Buarque de Holanda e Gilberto Gil morreram há 500 anos. Devagar com o andor, moçadinha.
E onde entra a forma "fora", do texto do professor Paulo S. Pinheiro? O que temos aí é o emprego (erudito) do mais-que-perfeito do indicativo no lugar do imperfeito do subjuntivo. "Não fora o patriotismo..." equivale a "Não fosse o patriotismo...". É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras

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