São Paulo, sábado, 04 de dezembro de 2010

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DEBATE FOLHA VIOLÊNCIA

Maior problema do Rio está nas armas, e não nas drogas

PARA ESPECIALISTAS, UPP É UM PROJETO BOM, MAS TOCADO POR UMA POLÍCIA INEFICIENTE, QUE TERIA QUE SER REFUNDADA

DO RIO

O problema brasileiro não são as drogas, mas armas. As UPP (Unidades de Polícia Pacificadora) mudam a rotina de comunidades, mas simbolizam um projeto bom tocado por uma polícia ruim, ineficiente e vinculada ao crime.
Além de liberar moradores do controle do tráfico, o Estado precisa dar infraestrutura e cidadania para evitar que o projeto se desgaste. O apoio da mídia não pode mascarar as deficiências da polícia, que precisa ser refundada.
Essa é a síntese do debate promovido anteontem pela Folha no Cine Glória, no Rio.
Participaram o antropólogo Luiz Eduardo Soares, o consultor de segurança, comentarista de TV e ex-capitão do Bope Rodrigo Pimentel, o deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL) e o cineasta José Padilha, sob a mediação da repórter especial Claudia Antunes.
Soares e Pimentel estão entre os autores de dois volumes de "Elite da Tropa", livros que nortearam Padilha nas filmagens de "Tropa de Elite" 1 e 2.
Leia, a seguir, trechos do debate.

UPPs
As UPPs são "um excelente projeto", mas que precisa ser complementado, disse Luiz Eduardo Soares.
"O problema é a transposição de um projeto-piloto para uma política pública, para que tenha escala. Se isso se fizer, em meio à degradação policial, a UPP não prospera, não se sustenta. Para que possa prosperar, as polícias têm de ser transformadas."
O antropólogo apontou que, no Rio, a polícia e o crime são indistinguíveis. "Claro que temos policiais honestos, arriscando sua vida por salários indignos, verdadeiros heróis. Mas são obrigados a conviver com criminosos."
"Não há criminalidade organizada importante no Rio de Janeiro, inclusive o tráfico, sem a aliança, parceria, seja por omissão, cumplicidade e depois participação protagonística, das polícias."
Para Soares, a contratação de novos policiais para as UPPs é a confirmação pelo poder público de que eles não podem contar com as polícias para um projeto inovador, de respeito aos direitos humanos, de valorização da comunidade num serviço congruente com as determinações constitucionais.
José Padilha levantou o que chamou de "paradoxo".
"O projeto da UPP não é da polícia, é do governo. A polícia ficou 30 anos convivendo com o tráfico. A organização policial não fez o projeto das UPPs. O que temos aqui é o governo empurrando uma polícia ruim para fazer um projeto que é bom", afirmou.
Marcelo Freixo disse que o mapa de instalação das UPPs é revelador de seu projeto. "É o corredor hoteleiro, a zona portuária, o entorno do Maracanã e a Cidade de Deus, único lugar em Jacarepaguá [zona oeste] que não está na mão da milícia."
"Não é possível alguém dizer que é coincidência. É um projeto de cidade. É a retomada de territórios que estão em lugares estratégicos para grandes investimentos."
Freixo expôs sua preocupação a partir do exemplo de duas comunidades com UPP que visitou, o Chapéu Mangueira e a Babilônia, ambas no Leme, zona sul do Rio.
"Quem garante que daqui a dez anos esses moradores que construíram aquela comunidade, que são referências históricas e culturais, vão estar mantidos ali?"
"Ficam em um dos lugares mais valorizados do Rio, com uma das vistas mais lindas que já vi. Qual é a política pública que será desenvolvida para que eles consigam ficar ali e resistam a tudo que vai acontecer com a não permanência do varejo da droga?"
Rodrigo Pimentel exemplificou os efeitos da implantação da UPP. "Na Cidade de Deus, a UPP prende uma pessoa por dia por tráfico. Antes da UPP, eram cinco ou seis por mês para uma população de 65 mil habitantes. Agora está um ano sem homicídios. É muito mais impactante."

Refundar a polícia
Luiz Eduardo Soares declarou que o desafio é mudar a polícia. "As investigações que apontam policiais individualmente pela responsabilidade de brutalidades e por corrupção são equivocadas e injustas. Evidentemente, todo indivíduo é responsável por suas práticas."
"Estamos diante de um problema político, institucional, que tem seu padrão de funcionamento", afirmou o ex-subsecretário de Segurança do Estado do Rio.
"Você tem de contratar [no caso das UPPs] e promover toda uma qualificação específica porque não há repasse para a instituição. A instituição não é confiável, está degradada", disse Soares.
"Podemos continuar assim, só contratando policiais? Precisamos usar a polícia, valorizá-la, para que comece a responder a um processo de governança democrático. No Rio, essas mudanças significam refundação", afirmou.

A operação
Ao comentar as acusações de violência, roubo e furtos por policiais na ocupação do Complexo do Alemão, Marcelo Freixo disse que se aceita que a polícia aja no local de um modo que seria impensável em Ipanema, bairro nobre da zona sul carioca.
"A gente acha normal que a dignidade no Rio tenha CEP. A gente acha naturais coisas completamente absurdas. Coisas que seriam inadmissíveis em qualquer lugar. Como se aquela população tivesse responsabilidade pela barbárie que ela viveu mais do que ninguém."
"Quem era a principal vítima do tráfico no Alemão? Nós? Não, eles. O respeito deveria ser muito maior a eles."
Rodrigo Pimentel relatou o que sentiu quando viu as imagens de traficantes fugindo no alto do morro.
"Muita gente se perguntou por que a polícia não deu tiro em todo mundo e matou aqueles 200. Confesso que era o meu desejo. Não tenho a menor vergonha de dizer que gostaria que eles morressem. Era uma situação de beligerância, de guerra."

Drogas e armas
Luiz Eduardo Soares disse ser "absolutamente fundamental" distinguir armas e drogas. "No negócio da droga ilícita, eu sou antiproibicionista. Sou a favor da legalização das drogas."
"Se nós separarmos drogas e armas, talvez consigamos fazer o fundamental, que é salvar vidas. Porque as armas são a principal responsável por essa violência letal, todos nós sabemos. No Brasil, não há controle das armas ilegais. O nosso problema não são as drogas."

Mídia e abusos
Como comentarista de segurança da Rede Globo, Pimentel ficou 34 horas no ar em cinco dias. "Talvez eu seja um pouco responsável por essa onda otimista, mas é difícil esconder o entusiasmo."
"Quem conhece o Complexo do Alemão e sabe o quanto aquilo gera de violência sabe que a operação foi um divisor de águas", afirmou.
Pimentel contou um episódio: "Quando terminou a operação, a gente disse lá na Rede Globo: vai ter UPP no Alemão. Recebemos um contato do governo do Estado dizendo isso, mas o secretário de Segurança nos desmentiu. "Não é meu planejamento neste momento", ele disse.
"Nós insistimos porque a sociedade do Rio não admite mais uma operação policial desacompanhada de UPP. À noite, o governador disse: "Vai ter UPP no Alemão"."
Padilha aparteou Pimentel para afirmar: "Você resumiu o que está acontecendo: a Rede Globo falou que iria ter UPP no Alemão, o [secretário] Beltrame falou que não e aí o governador fez o que a Rede Globo falou para ele fazer: UPP no Alemão."
"É o "Diário Oficial" antecipado", emendou Freixo.
O cineasta retomou: "Por que tem 50 corregedores no Alemão? Porque tem 50 câmeras. Se não tivesse, não teria nenhum. Vamos ser realistas. A Globo está empurrando uma polícia ruim para fazer um programa bom."
Contrapondo-se a Pimentel, Padilha questionou: "Qual é o papel da imprensa? Mobilizar ou informar? Eu acho que a imprensa tem de informar: a UPP é boa para os moradores, melhor que o tráfico, porém a polícia está corrompida, não representa o bem", declarou.
"Que governo é esse que só fez UPP por que a Globo falou para ter? Que só colocou corregedoria depois que a Globo mostrou?"


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