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PASQUALE CIPRO NETO
"A rua não cabe todos os homens"
O bordão é de uma peça
publicitária de uma fábrica
de automóveis: "Cabe tudo, cabem todos". O leitor certamente
notou que o verbo "caber" aparece primeiro no singular ("cabe"),
em concordância com "tudo", e
depois no plural ("cabem"), em
concordância com "todos". Como
se sabe, o verbo concorda com o
sujeito, logo o sujeito de "cabe" é
"tudo", e o de "cabem" é "todos".
Em se tratando das variedades
formais da língua, é imperativa a
concordância do verbo com o sujeito (anteposto ou posposto). O
conhecimento desse mecanismo
também é imperativo, o que se
deduz, por exemplo, da última
prova da Fuvest. A banca pediu
aos candidatos que reescrevessem
esta frase, "fazendo as correções
necessárias": "As despesas de
transporte ou quaisquer ônus decorrente do envio do produto para troca corre por conta...".
Pois bem, há duas incorreções:
uma de concordância nominal
(no adjetivo "decorrente", que deve ser flexionado no plural -"decorrentes") e uma de concordância verbal (na forma "corre", que
também deve ser flexionada no
plural -"correm").
Mas voltemos ao verbo "caber",
que normalmente é usado com a
seguinte estrutura: alguma coisa
cabe em algum lugar/recipiente
etc. Na verdade, a ordem quase
nunca é essa; normalmente o sujeito de "caber" é posposto ("Cabem oito livros nessa caixa"; "Cabe muito amor no meu coração").
Pois bem, caro leitor, e se eu lhe
disser que o verbo "caber" pode
apresentar outra estrutura, em
que o que cabe é o "recipiente"?
Recorramos ao poema "Mundo
Grande", de Drummond, em que
o poeta "dialoga" com outro texto
seu ("Poema de Sete Faces" -
"Mundo mundo vasto mundo, /
mais vasto é meu coração"):
"Não, meu coração não é maior
que o mundo. / É muito menor. /
Nele não cabem nem as minhas
dores. / (...) Sim, meu coração é
muito pequeno. / Só agora vejo
que nele não cabem os homens. /
Os homens estão cá fora, estão na
rua. / A rua é enorme. Maior,
muito maior do que eu esperava. /
Mas também a rua não cabe todos os homens. / A rua é menor
que o mundo".
Notou o último emprego de "cabe", caro leitor? O sujeito de "cabe" é o "recipiente", ou seja, "a
rua". É ela que não cabe (não
comporta) todos os homens. Note,
por favor, que Drummond se vale
dos dois usos de "caber" ("Nele
não cabem nem as minhas dores"; "A rua não cabe todos os homens"), o que talvez se explique
pela ênfase que o poeta quer dar
às dores e à rua. Esse uso "insólito" de "caber" está registrado nos
dicionários de regência.
Bem, na peça publicitária, optou-se pelo "tradicional": no tal
veículo, cabe tudo, cabem todos.
Tenho leitores geniais. Adoro-os. Um deles escreveu uma carta
exigüíssima: "Pasquale, dia 29
você cita o Manuel Bandeira
-Pneumotórax-, mas o verso
ficou fraco, por você ter tirado um
"que". Corrija, por favor".
Sabe como o leitor assina a
mensagem? Assim: "a) M B" (como o próprio Bandeira fazia). No
verso do envelope, sabe quem é o
remetente? Simplesmente "Manuel Bandeira" (sem endereço). O
mais intrigante é que, pelo carimbo do Correio, deduz-se que a carta vem do Rio de Janeiro...
O leitor tem inteira razão. Vamos lá: "A vida inteira que podia
ter sido e que não foi". É isso.
Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras
E-mail - inculta@uol.com.br
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