São Paulo, quinta-feira, 05 de fevereiro de 2004

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PASQUALE CIPRO NETO

"A rua não cabe todos os homens"

O bordão é de uma peça publicitária de uma fábrica de automóveis: "Cabe tudo, cabem todos". O leitor certamente notou que o verbo "caber" aparece primeiro no singular ("cabe"), em concordância com "tudo", e depois no plural ("cabem"), em concordância com "todos". Como se sabe, o verbo concorda com o sujeito, logo o sujeito de "cabe" é "tudo", e o de "cabem" é "todos".
Em se tratando das variedades formais da língua, é imperativa a concordância do verbo com o sujeito (anteposto ou posposto). O conhecimento desse mecanismo também é imperativo, o que se deduz, por exemplo, da última prova da Fuvest. A banca pediu aos candidatos que reescrevessem esta frase, "fazendo as correções necessárias": "As despesas de transporte ou quaisquer ônus decorrente do envio do produto para troca corre por conta...".
Pois bem, há duas incorreções: uma de concordância nominal (no adjetivo "decorrente", que deve ser flexionado no plural -"decorrentes") e uma de concordância verbal (na forma "corre", que também deve ser flexionada no plural -"correm").
Mas voltemos ao verbo "caber", que normalmente é usado com a seguinte estrutura: alguma coisa cabe em algum lugar/recipiente etc. Na verdade, a ordem quase nunca é essa; normalmente o sujeito de "caber" é posposto ("Cabem oito livros nessa caixa"; "Cabe muito amor no meu coração").
Pois bem, caro leitor, e se eu lhe disser que o verbo "caber" pode apresentar outra estrutura, em que o que cabe é o "recipiente"? Recorramos ao poema "Mundo Grande", de Drummond, em que o poeta "dialoga" com outro texto seu ("Poema de Sete Faces" - "Mundo mundo vasto mundo, / mais vasto é meu coração"):
"Não, meu coração não é maior que o mundo. / É muito menor. / Nele não cabem nem as minhas dores. / (...) Sim, meu coração é muito pequeno. / Só agora vejo que nele não cabem os homens. / Os homens estão cá fora, estão na rua. / A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava. / Mas também a rua não cabe todos os homens. / A rua é menor que o mundo".
Notou o último emprego de "cabe", caro leitor? O sujeito de "cabe" é o "recipiente", ou seja, "a rua". É ela que não cabe (não comporta) todos os homens. Note, por favor, que Drummond se vale dos dois usos de "caber" ("Nele não cabem nem as minhas dores"; "A rua não cabe todos os homens"), o que talvez se explique pela ênfase que o poeta quer dar às dores e à rua. Esse uso "insólito" de "caber" está registrado nos dicionários de regência.
Bem, na peça publicitária, optou-se pelo "tradicional": no tal veículo, cabe tudo, cabem todos.
 
Tenho leitores geniais. Adoro-os. Um deles escreveu uma carta exigüíssima: "Pasquale, dia 29 você cita o Manuel Bandeira -Pneumotórax-, mas o verso ficou fraco, por você ter tirado um "que". Corrija, por favor".
Sabe como o leitor assina a mensagem? Assim: "a) M B" (como o próprio Bandeira fazia). No verso do envelope, sabe quem é o remetente? Simplesmente "Manuel Bandeira" (sem endereço). O mais intrigante é que, pelo carimbo do Correio, deduz-se que a carta vem do Rio de Janeiro...
O leitor tem inteira razão. Vamos lá: "A vida inteira que podia ter sido e que não foi". É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras

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