São Paulo, segunda-feira, 05 de abril de 2010

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MOACYR SCLIAR

O começo de tudo


Naquele momento eles encontrariam a partícula de Deus, aquela que explicaria a origem de tudo, até do amor


Os aplausos foram intensos nas salas de controle quando os detectores do Grande Colisor de Hádrons (LHC), instalado na fronteira entre França e Suíça, marcaram o choque de partículas subatômicas a uma velocidade próxima à da luz.
O colisor possui um túnel oval de 27 quilômetros de comprimento e custou US$ 9,4 bilhões. Cada colisão entre as partículas cria uma explosão que permite aos cientistas rastrear e analisar o que aconteceu um nanossegundo depois do hipotético Big Bang original, 13,7 bilhões de anos atrás. Os físicos estão se concentrando na identificação do bóson de Higgs, a partícula que tornaria possível a conversão da matéria criada no Big Bang em massa e é também conhecida como "partícula de Deus". Os cientistas também esperam encontrar evidência concreta da matéria escura, que se acredita ser responsável por cerca de 25% do Universo. Ciência, 31 de março de 2010

FÍSICOS , ele e ela tinham se conhecido e se casado quando cursavam a universidade; os dois vibraram com o sucesso do colisor de partículas. Os dois brindaram, com os colegas, àquela extraordinária vitória da ciência. E, depois disso, os dois ficaram em silêncio.
É que aos dois ocorreu a mesma comparação: o casamento como uma máquina de colisões. Metáfora inevitável, depois de todos aqueles anos de brigas e desacertos. Aquilo que parecera um belo e ensolarado caminho levando à completa felicidade era, como a grande máquina, um túnel subterrâneo.
Um longo túnel, muito maior que aquele, de 27 quilômetros, que os cientistas haviam mandado construir na Europa, a um preço elevado (mas não mais elevado que o preço emocional que ambos pagavam por aquilo que agora consideravam um erro). Um túnel escuro, sem saída, um espaço de pesadelo no qual as partículas, aceleradas a velocidades alucinantes, não teriam outra alternativa a não ser colidir.
E colidir era o que eles vinham fazendo em todos aqueles anos. Brigavam por tudo: por espaço no acanhado apartamento, pelo restaurante onde iriam jantar no sábado; brigavam por ciúmes, brigavam por intolerância. Só os dois, sozinhos em seu túnel.
Não tinham filhos; num raro momento de concordância, haviam chegado à conclusão de que crianças atrapalhariam os ambiciosos projetos de ambos, muito semelhantes àqueles dos cientistas europeus.
E por que não se separaram?
Boa pergunta. A verdade, a surpreendente verdade, é que não queriam se separar. Tinham, ambos, a esperança, talvez absurda, que os dialéticos e persistentes choques acabariam por levá-los à descoberta da verdade. Não estas simplórias verdades com as quais a maioria das pessoas se contenta; não, a grande verdade, o Big Bang de todas as verdades, o momento em que eles se descobririam por inteiro.
Naquele momento eles encontrariam a partícula de Deus, aquela que explicaria a origem de tudo, inclusive dessa energia misteriosa que a ficção chama de amor. Por enquanto vivem imersos na matéria escura de seu sombrio e tenso universo. Mas um dia a luz se fará.
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MOACYR SCLIAR escreve nesta página, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha.

moacyr.scliar@uol.com.br


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