São Paulo, domingo, 05 de maio de 2002

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"A chuva trazia ossos e roupa de defunto"

DA REPORTAGEM LOCAL

"Enchente dentro de casa já é ruim. Agora imagine uma enchente que traz pedaços de corpos, ossos e roupas de defuntos."
O marceneiro José Batista do Nascimento, 60, se recorda sem nenhuma saudade do tempo em que, a cada chuva forte, o córrego que sai da área do cemitério Vila Nova Cachoeirinha inundava a casa dele e, com a enxurrada, vinha todo o tipo de lixo funerário.
"Era como num filme de terror. A gente estava vendo televisão e, de repente, corria para dentro de casa um monte de água suja com paletós velhos e partes de esqueletos. Uma vez acho que veio um fêmur inteiro", conta Nascimento.
Ele mora há 16 anos na região conhecida hoje como Cohab Engenheiro Guilherme Henrique Pinto Coelho (que fica logo abaixo do cemitério) e convive diariamente com as consequências da degradação ambiental causada pelo Vila Nova Cachoeirinha.
No fim dos anos 90, quando retirou as pessoas que viviam na encosta do cemitério e construiu para elas um Cingapura ao lado da Cohab, a Prefeitura de São Paulo fez uma vala para conter o córrego e canalizou um trecho do seu curso, mas sobre as águas que ficam a céu aberto se forma uma espécie de nata de sujeira, e o cheiro de carniça -característico de águas contaminadas por necrochorume- é uma constante.
Tão constante que Nascimento afirma estar acostumado. "Mau cheiro? Nem sinto mais", afirma.
As enchentes acabaram na casa do marceneiro, mas continuam na parte mais baixa do bairro, segundo a agente comunitária de saúde Noemi Alves Moreira Silva, 48, moradora da região há quase 20 anos. "Como a vala vai ficando mais estreita, acaba não dando vazão ao córrego. Então, quando chove, ele transborda e costuma chegar a até um metro de altura."
Sobre os restos de cadáveres, Noemi afirma, rindo, que também sofreu com o problema, mas diz achar que eles não chegam mais às casas do bairro.
Ela trabalha no posto de saúde mantido pelo governo do Estado na região, mas diz não ter conhecimento de estatísticas de casos de doenças de veiculação hídrica. "Mas sei que em 2001 foram 28 casos de dengue só no bairro." Isso porque em trechos do "rio do cemitério" a água fica quase parada.
No lugar onde antes foram as favelas Boi Malhado e Morro da Esperança vivem hoje cerca de 1.600 pessoas, segundo a associação de moradores, da qual Nascimento é presidente, e Noemi, vice.
A agente de saúde conta que foi uma das primeiras a ir morar no local, quando 119 pessoas invadiram as encostas do cemitério. Ela confirma que, durante cerca de 15 anos, os moradores da favela consumiram água de poço, mas diz não se recordar de um gosto adocicado, que pode estar associado à contaminação por necrochorume. Hoje a região é abastecida pela Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo). (MD E MV)



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