São Paulo, terça-feira, 05 de junho de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

RECICLAGEM

Representantes de cooperativas de coleta de lixo pressionam por reconhecimento da profissão e acesso a crédito

Congresso em Brasília mobiliza catadores

RICARDO KOTSCHO
ENVIADO ESPECIAL A BRASÍLIA

Foram 16 horas de viagem, mais de 1,1 mil km chacoalhando de São Paulo a Brasília num ônibus comum de janelas abertas, muita cantoria e batucada. Ninguém reclamou. "Brasília é linda", extasiou-se Luana Rangel, 38, mãe solteira de quatro filhas, uma das passageiras mais animadas no ônibus da Paluana Turismo.
Luana nunca tinha saído de São Paulo, a exemplo da maioria dos outros 48 passageiros que vieram participar do 1º Congresso Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis, aberto ontem à noite, sob as tendas do Centro Comunitário da Universidade de Brasília.
Só do Estado de São Paulo eram aguardados 350 catadores organizados em delegações de 50 municípios. De todo o país, havia mais de 1,7 mil inscritos.
Na quinta-feira, quando termina o evento, catadores de papel e moradores de rua vão realizar uma marcha, seguida de ato público em frente ao Congresso Nacional.
"Hoje é um dia histórico", anunciou a irmã Maria Emília Ferreira, das cônegas de Santo Agostinho, durante a celebração de despedida na Casa de Oração, no bairro da Luz, domingo à tarde. "Pessoas que eram tidas como nada, o lixo da sociedade, que enfeavam as ruas... Depois de um trabalho de muitos anos, conseguiram se organizar, dando um exemplo à nação."
A preparação foi longa. Desde que surgiu a idéia de promover o congresso, em agosto do ano passado, todos os domingos representantes das diversas cooperativas formadas em São Paulo nos últimos anos reuniram-se na Casa de Oração para organizar o evento, com a ajuda de ONGs, entidades assistenciais como a OAF (Organização do Auxílio Fraterno) e voluntários.

Overbooking
Na partida, às 17h, o entusiasmo era tanto que houve overbooking no ônibus coordenado por Carlos Alberto Fabrício, 48, o Carlinhos, pioneiro na organização dos catadores paulistanos.
O problema foi rapidamente resolvido com o remanejamento de passageiros para outros ônibus e, meia hora depois, o comboio pegava a estrada.
Operário da construção civil, Carlinhos perdeu o emprego na recessão do início dos anos 80. Ficou sem dinheiro, perdeu os documentos e acabou indo morar sob os viadutos da Baixada do Glicério. "Éramos uns dez, e o grupo nem tinha nome", recorda.
Em 1989, Carlinhos e outros catadores criaram a Coopamare, que hoje tem 64 cooperados e serviu de modelo para a organização de outros grupos na Grande São Paulo.
Depois de uma série de encontros estaduais, eles definiram dois objetivos básicos para o congresso nacional. "O governo precisa, em primeiro lugar, reconhecer que nós existimos e regulamentar a profissão. Depois, queremos linhas de financiamento para as cooperativas", resume Carlinhos.

Biodigestor
Orfã de pai e mãe, Luana Rangel não sabe onde nasceu, mas não se faz de rogada quando lhe perguntam o que quer fazer em Brasília: "Quero falar com o presidente", diz a catadora da cooperativa de reciclagem do Embu, na região oeste da área metropolitana.
"Eu falaria para ele que não existe só Brasília, não. A luta dos catadores interessa para o país porque ajuda a resolver o problema do desemprego e a reciclar o lixo das ruas."
A cooperativa de Luana é um exemplo de como a organização dos catadores pode mudar suas vidas. Há três anos, eles conseguiram juros especiais do Banco do Brasil para um empréstimo de R$ 25 mil destinado à compra de equipamentos, roupas de trabalho, telefone e computador.
Já pagaram tudo o que deviam. Ganham em média R$ 300 por mês, além de uma cesta básica cedida pela prefeitura, que também emprestou um galpão e dois caminhões.
Em outro extremo da cidade, na divisa de São Paulo com Diadema, o Projeto de Coleta Seletiva Pedra sobre Pedra foi ainda mais longe. Organizado em torno de um antigo lixão, desenvolve um tecnologia própria e oferece oficinas de arte para as crianças de rua.
Jocemar Silveira, 28, conta aos colegas de viagem que seu grupo está desenvolvendo um protótipo de biodigestor para provar que é possível tirar gás metano de resíduos domésticos. "Vai dar para usar em fogões domésticos e em carros", anima-se.

Arte ecológica
Um dos parceiros de Jocemar, José da Aleluia de Almeida, 38, baiano de Ilhéus, sonhava em cursar uma faculdade de música em São Paulo, mas acabou indo trabalhar como entregador de uma indústria de bebidas.
Depois de montar uma banda de rock, a "Dose Fatal", encantou-se com o trabalho do Pedra sobre Pedra, onde dá aulas de música às crianças e as ensina a fazer arte com material reciclado.
Em abril, Aleluia lançou seu primeiro CD -"O que fere o planeta"- só com composições próprias, uma das formas de tornar o grupo auto-sustentável.
A cada parada dos ônibus, é uma festa, com troca de lanches e experiências. Às 6h, o dia clareando, na saída do posto de Cristalina (GO) para a última etapa até Brasília, ainda resta ânimo para a cantoria. "Oh Deus, salve o catador/Que esta luta abraçou/Pra Brasília nós iremos/Conquistar nosso valor/ Leste-oeste, norte a sul/Em Brasília somos um."


Texto Anterior: Memória: Fundadora de entidade voluntária é enterrada
Próximo Texto: Dengue: CE pode bater recorde de número de casos do tipo hemorrágico
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.