São Paulo, domingo, 05 de agosto de 2007

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Viagem de trem guarda histórias de desconhecidos

Trajeto de Vitória (ES) a Belo Horizonte (MG) corta 41 municípios nas 13 horas de percurso pela estrada de ferro

A possibilidade de rápida socialização nos vagões é a principal razão citada pelos passageiros, além de segurança e preço menor

Rafael Andrade - 2.ago.07/Folha Imagem
Funcionários ajudam uma passageira a desembarcar em uma das paradas até a Vitória (ES)


ANTÔNIO GOIS
ENVIADO ESPECIAL A VITÓRIA

O aposentado Antônio Barcellos, 71, mineiro simpático e de fala mansa, fez sua vida ao longo do trajeto da Estrada de Ferro Vitória a Minas. Nascido em Governador Valladares, no meio do caminho percorrido pelo trem que liga Belo Horizonte a Vitória, desde os 15 anos, ele já costumava embarcar em sua cidade natal para estudar na capital mineira.
Em 1961, ao fazer o sentido oposto, em direção à capital capixaba, conheceu Maria do Carmo Barcellos, 66, com quem está casado até hoje.
Barcellos coleciona histórias do trem desde a época em que a locomotiva era movida a vapor -hoje é a diesel e eletricidade- e reconhece que, não fosse ele, talvez nunca tivesse conhecido sua mulher. "Ando nele desde o tempo em que era uma maria-fumaça. Naquela época, tinha de usar um jaleco igual ao de médico porque a fuligem que vinha do vapor podia queimar os passageiros", conta.
Ele não é o único com história de vida tão ligada ao veículo que é administrado pela Vale do Rio Doce e atende a população de 41 municípios em 13 horas de viagem.
O supervisor do trem, João Linhares Ayres, lembra que, há dois anos, recebeu com surpresa um convite de casamento de um casal desconhecido. "Era de uma moça que conheceu o marido numa viagem em nosso trem e resolveu nos convidar. Mandamos um representante da empresa para o casamento e demos, de presente, uma miniatura de um vagão."
Essa possibilidade de socialização é uma das principais razões citadas pelos passageiros que fazem hoje uso da linha.
Na quinta-feira passada, quando a reportagem da Folha fez a viagem em todo seu trajeto até Belo Horizonte, era possível ver isso na prática, essa socialização. No vagão-restaurante, acessível aos passageiros das classes executiva e econômica, desconhecidos se sentavam na mesma mesa e, com alguns minutos de conversa, passavam a impressão de que eram velhos conhecidos.
"Já fiz este trecho de avião e de ônibus, mas não gostei. Me senti muito preso. Aqui, posso andar entre os vagões e fico mais a vontade. E a gente acaba também fazendo amizade", diz o militar Ritz Soares.
Obviamente, a escolha anual de mais de 1 milhão de passageiros por usar a linha Vitória a Minas não se resume a uma questão de sociabilidade. Todos os passageiros entrevistados pela Folha apontaram também a maior segurança e o preço mais em conta como motivos para escolherem o trem em vez do ônibus.
A viagem segue tranqüila, sem sobressaltos, ao longo da ferrovia de maior movimentação de carga do país. Justamente por dividir o mesmo trilho com locomotivas que chegam a carregar mais de 200 vagões de minérios de ferro, a velocidade do trem é limitada a 67 km/h, o que aumenta o tempo de viagem e também afugenta executivos que viajam a trabalho.
Isso ajuda a contribuir para o clima bucólico de quase toda a viagem, que só é quebrado quando, ao se aproximar de Belo Horizonte, o maquinista adverte: "Senhores passageiros, por favor, fechem suas janelas porque, nesse trecho, infelizmente, temos sido alvos de apedrejamento".
Num Brasil que perdeu o costume de viajar de trem, fazer uma viagem dessas parece exótico. Em tempos de pânico aéreo, no entanto, faz também sentido o comentário ouvido pela Folha, feito entre funcionários do vagão-restaurante após terem se despedido dos repórteres: "Eles, agora, vão entrar em um Airbus".


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