São Paulo, terça-feira, 05 de agosto de 2008

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RUBEM ALVES

Valha-me santo Expedito


Olho de devorador de jornal é o primeiro, que vê as coisas efêmeras; o outro é o que vê as coisas que não envelhecem

UM JORNALISTA MEU amigo disse-me que, se eu quiser fazer sucesso como cronista, tenho de escrever sobre as notícias dos jornais porque são elas que, logo pela manhã, ocupam o imaginário dos leitores, ávidos por novidades.
Tem de ser notícia nova. Notícia velha, da semana anterior, já era. O tempo dos jornais é o "hoje". Notícia da semana anterior já está no lixo.
Lembrei-me então de santo Expedito, milagreiro poderosíssimo que tem como lema, numa versão popular, a máxima "Não deixes para amanhã o pode ser feito hoje". Que esse é o lema de santo Expedito está evidente na cruz na sua mão direita. No braço horizontal da cruz está escrito "Hodie" -"hoje", em latim.
Conto um episódio pessoal para provar a presteza dos milagres de santo Expedito. Estava numa capital do Nordeste, não me lembro qual, e fui convidado a visitar uma mulher extraordinária, matriarca que se cercava de dezenas de filhos e netos. Andando só pelos caminhos de sua chácara, notei que ela era uma católica devota, pois havia capelas espalhadas pelo caminho. Uma delas era dedicada a santo Expedito.
De volta à casa, para puxar conversa, referi-me aos poderes extraordinários do dito santo, que atende no mesmo dia aos pedidos que lhe são feitos. Ela concordou e disse: "Disso tenho provas. Uma amiga estava tendo problemas com o marido, que a maltratava muito. Sugeri-lhe apelar a santo Expedito. Foi o que fez. E o problema se resolveu no dia".
Esperei em suspense que ela relatasse o que havia acontecido e que demonstrava o poder do santo.
"O marido se enforcou..."
Com tais poderes sobre o "hoje", imaginei que o santo seria um cronista extraordinário, se não tivesse sido decapitado por questões de fé.
Tomando santo Expedito como exemplo, concluímos que uma crônica deveria ser um comentário sobre uma notícia que hoje é assunto de conversa.
A etimologia confirma o dito pelo meu amigo: a palavra "crônica" se deriva de Chronos, o deus Tempo, que impiedosamente devorava os seus filhos. Da minha vida ele já devorou quase tudo! Enchemo-nos de truques para disfarçá-lo, escondê-lo, retardá-lo, mas tudo é inútil.
Ricardo Reis colocou isso num poema: "Envelhecemos. Não vale a pena fazer um gesto. Não se resiste ao deus atroz que os próprios filhos devora sempre..."
Ângelus Silesius (1624-1667), místico e poeta, sugeriu que vivemos em dois tempos diferentes. Ele escreveu: "Nós temos dois olhos. Com um olho vemos o que se move no tempo e desaparece. Com o outro, vemos o que é eterno e permanece".
Olho de devorador de jornal é o primeiro, que vê as coisas efêmeras que logo estarão esquecidas. O outro é o olho que vê as coisas que não envelhecem e ficam sempre jovens. Quem vê com o segundo olho são os poetas. Livro de poemas não fica velho, Chronos não pode com ele.
Os gregos tinham consciência desses dois tempos e usavam palavras distintas para cada um deles. Chronos era o tempo medido pelas batidas do relógio e marcado pela rotação dos astros. Kairós era o tempo medido pelas batidas do coração e marcado pela pulsação da vida.
Por vontade própria eu não mudo. O jeito é fazer promessa a santo Expedito para que eu seja um cronista de sucesso...


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