|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
PASQUALE CIPRO NETO
"Se o próximo governo manter a atual política econômica..."
Volta e meia, os vestibulares pedem aos candidatos
que apontem a forma inadequada à linguagem empregada em
determinado texto. Em geral, essas questões se baseiam em artigos de jornais e revistas, espelhos
fiéis da língua viva.
É antológica uma questão da
Unicamp a esse respeito, baseada
num texto jornalístico em que se
lia algo parecido com isto: "Fulano só concorda em negociar se o
governo retirar do Congresso o
projeto ... suspender ... e repor as
perdas salariais". A banca pedia
ao candidato que apontasse a forma inadequada, que a substituísse pela adequada e que -aí é que
está o pulo do gato- explicasse o
provável motivo do desvio.
Vamos direto ao assunto: a forma inadequada é "repor", e a que
a substitui é "repuser". E o motivo
do desvio? Em poucas palavras,
pode-se dizer que o que levou o
redator a escrever "repor" em vez
de "repuser" é o que leva crianças
a dizer "eu sabo", "eu fazo" etc. Se
de "correr" temos "eu corro", de
"beijar", "eu beijo" e de "namorar", "eu namoro", é lógico que de
"fazer" tenhamos "eu fazo" e de
"saber", "eu sabo".
Com "repor" no lugar de "repuser", ocorre o mesmo processo. No
próprio texto em que se baseou a
questão, temos a sequência "se o
governo suspender ... retirar ... e
repor". Ora, os dois primeiros verbos apresentam conjugação regular, o que talvez induza o falante/redator a seguir o mesmo processo e "regularizar" a conjugação de "repor".
O que se vê no título deste texto
("Se o próximo governo manter a
atual política econômica" -a
construção é de título jornalístico
publicado no último domingo) se
enquadra no mesmo caso. Na língua padrão, a terceira pessoa do
futuro do subjuntivo de "manter"
é "mantiver" ("Se o próximo governo mantiver..."). O verbo
"manter" segue a conjugação de
"ter", do qual deriva.
Explicações e justificativas à
parte, parece inegável que aos jornalistas cumpre conjugar os verbos de acordo com a variedade
padrão da língua. Até aí, tudo
bem. O que me parece importante
é (re)lembrar que, muitas vezes, o
conceito de "certo" ou "errado"
(ou "adequado" ou "inadequado", ou seja lá o que for) é fruto de
convenção ou do predomínio da
variedade linguística de determinado grupo social.
Tento explicar melhor. Qual é o
certo: "A polícia interveio" ou "A
polícia interviu"? Se tomarmos
como "certo" o que é da variedade padrão da língua, a resposta é
"interveio", já que é essa a forma
vigente nessa variedade. Se tomarmos como "certo" o que é "lógico", a resposta é "interviu", já
que, com os verbos terminados
em "ir", a terminação regular da
terceira do singular do pretérito
perfeito (tempo de "interveio") é
"iu" ("assistir/assistiu", "permitir/permitiu", "decidir/decidiu"
etc.). Por uma dada razão, um belo dia o "errado", ou seja, o anormal ou irregular ("interveio"), virou "certo", por ter passado a fazer parte da variedade linguística
socialmente prestigiada.
Os leitores desta coluna sabem
que este texto é apenas mais um
da linha que adoto: não basta explicar como é; é preciso dizer por
quê. E, sobretudo, o que há por
trás dos fatos da língua. É isso.
Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.
E-mail - inculta@uol.com.br
Texto Anterior: Consumo de heroína produz "doente crônico" Próximo Texto: Trânsito: Detonação vai até terça na marginal Tietê Índice
|