São Paulo, quinta-feira, 05 de setembro de 2002

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PASQUALE CIPRO NETO

"Se o próximo governo manter a atual política econômica..."

Volta e meia, os vestibulares pedem aos candidatos que apontem a forma inadequada à linguagem empregada em determinado texto. Em geral, essas questões se baseiam em artigos de jornais e revistas, espelhos fiéis da língua viva.
É antológica uma questão da Unicamp a esse respeito, baseada num texto jornalístico em que se lia algo parecido com isto: "Fulano só concorda em negociar se o governo retirar do Congresso o projeto ... suspender ... e repor as perdas salariais". A banca pedia ao candidato que apontasse a forma inadequada, que a substituísse pela adequada e que -aí é que está o pulo do gato- explicasse o provável motivo do desvio.
Vamos direto ao assunto: a forma inadequada é "repor", e a que a substitui é "repuser". E o motivo do desvio? Em poucas palavras, pode-se dizer que o que levou o redator a escrever "repor" em vez de "repuser" é o que leva crianças a dizer "eu sabo", "eu fazo" etc. Se de "correr" temos "eu corro", de "beijar", "eu beijo" e de "namorar", "eu namoro", é lógico que de "fazer" tenhamos "eu fazo" e de "saber", "eu sabo".
Com "repor" no lugar de "repuser", ocorre o mesmo processo. No próprio texto em que se baseou a questão, temos a sequência "se o governo suspender ... retirar ... e repor". Ora, os dois primeiros verbos apresentam conjugação regular, o que talvez induza o falante/redator a seguir o mesmo processo e "regularizar" a conjugação de "repor".
O que se vê no título deste texto ("Se o próximo governo manter a atual política econômica" -a construção é de título jornalístico publicado no último domingo) se enquadra no mesmo caso. Na língua padrão, a terceira pessoa do futuro do subjuntivo de "manter" é "mantiver" ("Se o próximo governo mantiver..."). O verbo "manter" segue a conjugação de "ter", do qual deriva.
Explicações e justificativas à parte, parece inegável que aos jornalistas cumpre conjugar os verbos de acordo com a variedade padrão da língua. Até aí, tudo bem. O que me parece importante é (re)lembrar que, muitas vezes, o conceito de "certo" ou "errado" (ou "adequado" ou "inadequado", ou seja lá o que for) é fruto de convenção ou do predomínio da variedade linguística de determinado grupo social.
Tento explicar melhor. Qual é o certo: "A polícia interveio" ou "A polícia interviu"? Se tomarmos como "certo" o que é da variedade padrão da língua, a resposta é "interveio", já que é essa a forma vigente nessa variedade. Se tomarmos como "certo" o que é "lógico", a resposta é "interviu", já que, com os verbos terminados em "ir", a terminação regular da terceira do singular do pretérito perfeito (tempo de "interveio") é "iu" ("assistir/assistiu", "permitir/permitiu", "decidir/decidiu" etc.). Por uma dada razão, um belo dia o "errado", ou seja, o anormal ou irregular ("interveio"), virou "certo", por ter passado a fazer parte da variedade linguística socialmente prestigiada.
Os leitores desta coluna sabem que este texto é apenas mais um da linha que adoto: não basta explicar como é; é preciso dizer por quê. E, sobretudo, o que há por trás dos fatos da língua. É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.
E-mail - inculta@uol.com.br


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