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São Paulo, domingo, 05 de outubro de 2003

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NOVOS ANDARILHOS

Empregada doméstica caminha quase 6 horas para ir e voltar do trabalho por causa do preço do ônibus

Virgínia anda 22 km por dia para economizar

DA REPORTAGEM LOCAL

Quem vê Virgínia Maria de Jesus Santos, 40, saindo do serviço não imagina que ela se prepara para uma longa caminhada. De saia vermelha, sandália de salto baixo, sacola na mão, cabelos molhados e sorriso no rosto, a empregada doméstica nascida em Jequié (BA) jura que seu traje é igual ao que usou na ida, sem nenhuma preparação especial para a fotografia que a Folha fará dela.
A reportagem pegou Virgínia Santos de "surpresa" com a idéia de acompanhar seu percurso do trabalho para casa -ela soube com três horas de antecedência. O trajeto de 11 km -superior à distância do estádio do Morumbi ao Masp, na avenida Paulista- leva praticamente duas horas e 50 minutos a pé. Na ida, idem. De carro, são 35 minutos de viagem.
A empregada doméstica não tem nenhuma vocação para maratonista. Faz essa rotina diária apenas para não pagar a tarifa de ônibus de R$ 1,70. Ela guarda a verba dada pela patroa para pagar as despesas do dormitório onde mora com dois filhos, no bairro de Jova Rural, perto da rodovia Fernão Dias e da divisa de São Paulo com Guarulhos.
"Para andar um "tantinho", eu teria que pegar duas conduções. Quando sobra algum dinheirinho no final do mês, eu pego um ônibus ou uma lotação. Mas você deve saber, né? É difícil sobrar", afirma ela, cujo salário de R$ 350 sustenta a família e que, embora não saiba ler nem escrever direito, diz controlar seus gastos na cabeça ("R$ 170 no mercadinho, R$ 50 de uma cesta básica que eu compro no caminhão, R$ 70 de material de construção, paga um aqui, paga outro ali, quando você pensar já foi tudo embora").
Na saída do trabalho, às 17h12, no Mandaqui, na zona norte de SP, Virgínia Santos, 45 kg, ainda brinca: "O bom é que eu fico magrinha, não preciso nem me preocupar com academia".

"Sustos"
A andarilha nem se assusta mais com os cachorros que latem enquanto ela passa. Ela conta que já passou por situações mais difíceis nos últimos três anos, desde que se mudou do Jardim Pery (na zona norte, quando andava "apenas" 40 minutos para chegar ao trabalho) para a Jova Rural. Motivo da mudança: "A vizinhança não era muito boa".
Em 2001, Virgínia Santos foi atropelada na avenida Santa Inês -por onde ela passa às 17h50. "Foi aqui [ela aponta]. O carro me pegou quando eu tentei atravessar a rua. Eu subi [no capô] e caí no chão. O rapaz estava com pressa, nem queria me socorrer", diz.
A doméstica relata ainda que foi assaltada em 2002, na véspera de Natal. "Eu estava voltando pra casa e parei numa venda. O rapaz deve ter visto eu tirar meu dinheiro da carteira e me seguiu. Quando chegou lá no morro, estava bem escuro, ele apontou uma arma para a minha cabeça", afirma Virgínia Santos, que até hoje permanece sem seus documentos de identificação -todos foram roubados naquela ocasião.
O terceiro susto que ela relata é mais recente. Doente, caiu desmaiada no asfalto meses atrás. "Eu senti uma dor forte, depois veio aquela fraqueza. Quando me dei conta tinha um policial falando comigo. Ele me levou de carro ao hospital", conta a andarilha, que não parava de tossir na última quarta-feira, no trajeto para casa.
"Eu estou assim já faz um mês. No hospital me disseram que é uma pneumonia", afirma.

Calçadas
Virgínia Santos reclama da "falta de educação dos carros" (um deles buzina às 18h31, enquanto ela tenta atravessar a faixa de pedestres), mas parece nem dar atenção para a precariedade das calçadas em seu percurso. Passa por ruas com passeios estreitos, esburacados, bloqueados por automóveis estacionados, mas nem liga -equilibra-se no meio-fio.
A empregada doméstica não perde seu humor, mesmo com todos os obstáculos -solta gargalhadas durante a viagem. Às 18h39, cumprimenta conhecidos que andam em sentido contrário. "Depois de tanto tempo caminhando no mesmo lugar, a gente faz até amizade", explica.
Ao avistar um ônibus, às 18h47, perto do cemitério do Tremembé, a andarilha conta uma história curiosa. Diz que, quando tinha 16 anos e veio da Bahia para São Paulo, começou a trabalhar na casa do proprietário de uma viação.
Sobre a qualidade dos coletivos hoje, ela diz. "Eu não acho ruim, não. Mas prefiro a lotação. Ela deixa a gente mais perto de casa".
Diversão mesmo, para ela, é andar de metrô. "É muito bom. Eu adoro a escada rolante", afirma.

"Carona"
O trajeto de Virgínia Santos é variado. Ela atravessa zonas mais nobres, onde há casas de alto padrão do Horto Florestal, e favelas.
Quando entra no Jaçanã, às 19h08, ela comenta: "Eu queria morar por aqui". Mais adiante, na ladeira da rua Ari da Rocha Miranda, um rapaz, ao notar que ela estava sendo fotografada, diz: "Fiquem espertos. O morro está perigoso". Mas a andarilha, mesmo estando próxima da região onde já foi assaltada, tenta demonstrar tranquilidade: "Não ligue não, eles estão brincando".
Nessa longa ladeira, a garoa fina faz a empregada doméstica, que havia esquecido seu guarda-chuva, apressar os passos. Cansada, diz: "Eu vejo esses carros passando todos os dias e penso: Ai, meu Deus, que bom se eles me dessem uma carona!".
Às 19h51, os cavalos no meio da rua já fazem jus ao nome da Jova Rural. Às 20h03, quando sobe uma escadaria e chega na porta de sua casa, Virgínia Santos convida os acompanhantes para entrar.
Já dentro do cômodo, não chega nem mesmo a se sentar: ainda permanece durante meia hora em pé, relatando por que faz esse sacrifício. "Eu faço tudo pra não perder meu emprego", afirma ela, ao se despedir.
(ALENCAR IZIDORO)


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