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Jovens enfrentam ofensas e violência no mundo virtual
Tipo de agressão via internet, o "cyberbullying" atinge 46% dos 510 jovens que responderam à enquete da ONG Safernet
Vítima de ofensas na escola, Taiguara Chagas, 20, atua em peça como jovem que é encorajado por outros na internet a cometer suicídio
RAFAEL BALSEMÃO
DA REVISTA DA FOLHA
Alice (nome fictício) tinha 17
anos e cursava o ensino médio
no colégio Faap, em Higienópolis (zona oeste de SP). Estava
havia dois anos na escola quando descobriu que haviam sido
criadas anonimamente duas
comunidades no Orkut contra
ela: "Eu odeio a tosca da Alice"
e outra com referências preconceituosas ao Estado de origem de sua mãe.
Diante dos ataques, a estudante e sua família acharam
melhor mudá-la de colégio. Lá,
descobriram que a história tinha se espalhado. A solução foi
mandar Alice para fora do país,
enquanto eram tomadas providências legais para a retirada
das páginas do ar e o rastreamento do autor ou dos autores.
Alice estava no centro de um
caso de "cyberbullying", fenômeno que transfere para a internet as agressões típicas que
estudantes mais frágeis sofrem
dentro da escola. Enquanto o
clássico "bullying" acontece na
sala de aula, no playground e
nos arredores do colégio, a versão virtual transcende os limites da instituição de ensino.
As hostilidades se potencializam na rede mundial de computadores, diante da facilidade
atual de criar páginas e comunidades na internet. E-mails
anônimos, mensagens de celular injuriosas, blogs ofensivos e
vídeos humilhantes -todos fazem parte da violência virtual.
"No mundo real, a agressão
tem começo, meio e fim. Na internet, ela não acaba, fica aquele "fantasma'", compara Rodrigo Nejm, psicólogo e diretor de
prevenção da SaferNet Brasil.
O resultado preliminar de
uma enquete sobre segurança
na internet realizada no site da
ONG assusta: 46% dos 510 adolescentes e crianças que responderam ao questionário afirmam que foram vítimas de
agressões na internet ao menos
uma vez; 34,8% dizem que foram agredidos mais de duas vezes. Dos participantes, 31% são
do Estado de São Paulo, onde
há o maior número de relatos
segundo a SaferNet.
Os ataques a Alice começaram em 2005, mesmo ano em
que a mãe da jovem acionou a
Justiça. "A adolescente estava
completamente abalada quando chegou ao escritório", recorda o advogado que a defendeu,
José Luis de Oliveira Lima, 42.
A polícia conseguiu chegar ao
computador que originou as
comunidades, de uma colega de
classe de Alice. Só havia uma
relação entre as duas: Alice era
a melhor amiga do então namorado da autora do "cyberbullying". Procurada pela Folha, a
direção do colégio Faap não
quis se manifestar.
Também vítima de agressões
via web, a policial militar Nair
Caliguere, 54, teve dificuldade
para tomar providências diante das humilhações a que ela e a
filha foram submetidas. Só
conseguiu fazer um boletim de
ocorrência contra o "Blog das
Porcas", mantido por alunas do
colégio Renovação (zona sul),
em 2003, na terceira tentativa.
Na página, seis estudantes
atacavam professores e outras
alunas. O blog era especialmente virulento contra Mariana Caliguere, que na época era
modelo e hoje tem 22 anos e é
cadete da PM. "O mais pesado
foi elas falarem da minha mãe",
lembra a jovem.
O blog era popular pelo tom
de diário com que as integrantes falavam de bebedeiras e até
de detalhes da vida sexual.
Quando começaram os abusos
em relação a terceiros, o que
era engraçado ficou sério. Os
pais das "porcas" foram chamados ao colégio.
Três das seis jovens foram
"convidadas" a deixar a escola,
e o blog foi apagado. "Os filhos
copiam os valores dos pais", diz
Cláudia Baratella, 39, vice-diretora do colégio Renovação.
"O jovem não pára para pensar que a internet está no mundo. A conseqüência dos crimes
contra a honra, de calúnia e injúria na internet é desproporcional ao dano", afirma Patricia
Peck Pinheiro, 33, advogada especializada em direito digital.
Patricia foi uma das responsáveis em formular uma cartilha para o colégio Bandeirantes
com orientações sobre a utilização da internet. O colégio
São Luís também possui um
projeto que visa coibir a prática
do "bullying". Quem encabeça
a iniciativa é a professora de
português Roberta Ramos, 38.
Depois de aplicar um questionário com os estudantes para
ver quem se sentia vítima de
"bullying", começou um trabalho de conscientização.
Fórum "antibullying"
O blog da gaúcha Daniele
Vuoto, 22, é outra fonte de consulta (http://nomorebullying.blig.ig.com.br). A estudante
de pedagogia, que foi vítima de
"bullying" tradicional em três
das quatro escolas pelas quais
passou no RS, hoje ajuda pessoas nas mesmas condições.
"O que mais me machucava
era me sentir sozinha em escolas enormes, onde todos viam o
que acontecia e ninguém fazia
nada", diz Daniele, que passou
a ser o alvo por defender alunos
que eram ridicularizados. "Logo começaram a apontar defeitos em mim: muito branca, magra, notas altas." No auge de
uma depressão por não ser
aceita, a jovem tentou acabar
com a própria vida.
A crueldade por parte da turma pode gerar diferentes reações. "As conseqüências são
problemas de aprendizagem,
reprovação escolar, isolamento, depressão e até mesmo suicídio", diz Cleo Fante, pedagoga pioneira nos estudos sobre o
"bullying" escolar no Brasil.
Ela alerta para o surgimentos dos "bullycidas", pessoas
que incentivam os jovens que
sofrem "bullying" a praticar
suicídio. "É algo muito recente
e difícil de descobrir."
O incentivo ao suicídio virou
tema de peça de teatro. "Bate
Papo", do irlandês Enda Walsh,
ficou em cartaz na capital paulista durante um ano e deve
voltar aos palcos paulistanos
no começo de 2009.
Na obra, seis adolescentes
teclam na internet sobre Harry
Potter, Britney Spears e suicídio. Um deles, deprimido, interpretado por Taiguara Chagas, 20, é virtualmente encorajado por outros da mesma idade, 16 anos, a se matar.
Vítima na escola, o ator se
inspirou na própria história para encarnar o personagem.
Ruivo, ele era alvo de chacota
por causa da cor do cabelo. "Fui
bastante zoado e me sentia excluído", recorda Taiguara.
Superação
É também como se sentia V.,
da escola Projeto Vida, na zona
norte de SP. No ano passado, a
aluna começou a receber bilhetinhos com insultos de C., sua
colega de classe. Depois, vieram
as ameaças de agressão física.
As advertências da orientadora
educacional não intimidaram a
agressora. Em maio, veio a descoberta de que os xingamentos
e chacotas haviam migrado para o ambiente virtual.
Em seu blog, C. passou a agir
com deboche. "Quando vi a página, fiquei com muita vontade
de chorar. Depois, [fiquei] com
muita raiva", recorda V., que
era representada por uma bonequinha que explodia. "Era
muita crueldade", revolta-se a
mãe da adolescente.
O mesmo blog que atacava V.
foi usado como arma pelos pais
da menina para reagir. Com o
auxílio de um advogado, fizeram chegar até a escola uma
notificação extrajudicial pedindo providências.
A diretora pedagógica, Mônica Padroni, 45, assumiu o caso.
Chamou C. novamente para
conversar. "O que a deixou
mais abalada foi a possibilidade
de seus pais serem processados", diz. Foi só nessa hora que
a garota entendeu a proporção
do seus atos. Quis se desculpar.
A diretora sugeriu que C. escrevesse uma carta. "Nunca pensei
que ela pediria desculpas", afirma V., hoje com 13 anos.
A vítima até tentou mandar
uma reposta por escrito para a
ex-amiga. Não conseguiu. O
que sente em relação a tudo que
passou ainda não pode ser expresso em palavras. A agressora
hoje sabe que destratar alguém
pela internet tem conseqüência. A vítima aprendeu que é
muito difícil esquecer.
Colaborou RICARDO SANGIOVANNI, da Reportagem Local
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