São Paulo, segunda-feira, 06 de março de 2000


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DESAFINANDO A HISTÓRIA

A ideologia pede passagem

MANOLO FLORENTINO

Um historiador diria que as melhores letras do Carnaval de SP abordam períodos mais recuados de nossos 500 anos. E o ouvido atento aos sambas-enredo das escolas que desfilaram de sábado para domingo ajuda a entender o porquê.
"Brasil, do Reino Unido à Independência" é quase um samba-relatório da Morro da Casa Verde. Descreve um processo, porém, por meio de palavras, expressões e personagens. Seus marcos são a chegada da Corte portuguesa e a entronização do menino Pedro 2º.
Curioso: nele não há povo, a não ser o que "viu o príncipe regente/ se tornar imperador". Nada sobre escravos -embora a Revolta Malê (1835) tenha potencializado o temor dos senhores-, nada sobre a participação popular nas guerras civis da época.
O samba da Peruche passeia pelo Segundo Reinado destacando a estabilidade e o progresso econômico e cultural. Mas não se furta a apresentar as antíteses sociais ("A burguesia regeu alegria/ nos grandes salões/.../os negros pelas ruas e senzalas") e os conflitos -"se a noite é de luar, clareia/o alferes Dom Obá guerreia". Um único reparo: identificar uma "Revolução Industrial" nesse mar de escravidão é no mínimo absurdo.
Não por acaso esses dois sambas estruturam-se de forma similar aos das escolas do primeiro dia. É que em todos eles o uso e abuso da alusão foi recurso para enquadrar as letras na diversidade de explicações historiográficas estabelecidas quando se tratava de 1800 para trás. Eis a razão da preferência acadêmica por este tipo de samba.
Mas, se na República Velha desenhada pela Imperador do Ipiranga ainda é tímido o tratamento de personagens entranhados em nosso imaginário -Padre Cícero, Lampião e Antônio Conselheiro, "nomes que ficaram na memória/hoje nesse palco, fazem história/dessa nação"-, da Nenê de Vila Matilde em diante a ideologia pede passagem.
O motivo é simples: com o século 20 aumenta o grau de adesão histórica dos donos da festa, e tanto os artistas a produzem quanto o público que dela se farta passam a marcar posição.
Daí quase não haver diferença entre a letra de "Porque me Orgulho de Ser Brasileiro" e a fala do trabalhismo acerca do carisma, da clarividência e do caráter paternal e empreendedor de Vargas -"com coragem/mudou a estrutura do país/o pulso forte/criou um Brasil melhor/.../o grande caudilho/suplantava o ditador/fez uma revolução, o Estado Novo/ teve a sua aclamação/nos braços do povo!/.../ do trabalhador foi defensor/em forma de leis.... um grande pai". Todas as demais referências subordinam-se a esse paradigma. Detalhe: o samba da Nenê foi o primeiro do Grupo Especial a utilizar as palavras "trabalhador" e "cidadania".
Embora discreto, "Yes, Já Temos Mais que Bananas" percorre o mesmo caminho da ideologização. Aqui a relação entre os Anos Dourados e a imagem de JK é sutil, porém central. E se expressa nas referências ao progresso econômico, às asas de Brasília, à bossa nova e, sobretudo, à televisão e ao futebol. Mas também na intimidade com que os personagens históricos são tratados: "Alô! Alô! Nonô!", "Chateau", "Velho guerreiro", "rei da bola".
O samba da Tucuruvi parece ter-se inspirado em livro didático de História escrito por professor de esquerda. Sua extremada "politização" ("bruxa tá solta/o tio Sam quer mandar) não encobre - ao contrário, explicita - a linha ideologizante. Nomeia-se até alguns ícones da esquerda brasileira, como a tropicália e os grandes festivais, mas os autores não resistem ao apelo de seus próprios ídolos - Pelé, Ayrton Senna e Elymar.
Da letra da Vai-Vai pouco se pode dizer. Porque embora se pesque aqui e ali referências precisas aos últimos 15 anos, seu objeto não é a história, é a esperança.


Manolo Florentino é historiador da Universidade Federal do Rio de Janeiro.


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