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DESAFINANDO A HISTÓRIA
A ideologia pede passagem
MANOLO FLORENTINO
Um historiador diria que as melhores letras do Carnaval de SP
abordam períodos mais recuados
de nossos 500 anos. E o ouvido
atento aos sambas-enredo das escolas que desfilaram de sábado
para domingo ajuda a entender o
porquê.
"Brasil, do Reino Unido à Independência" é quase um samba-relatório da Morro da Casa Verde.
Descreve um processo, porém,
por meio de palavras, expressões
e personagens. Seus marcos são a
chegada da Corte portuguesa e a
entronização do menino Pedro
2º.
Curioso: nele não há povo, a não
ser o que "viu o príncipe regente/
se tornar imperador". Nada sobre
escravos -embora a Revolta Malê (1835) tenha potencializado o
temor dos senhores-, nada sobre a participação popular nas
guerras civis da época.
O samba da Peruche passeia pelo Segundo Reinado destacando a
estabilidade e o progresso econômico e cultural. Mas não se furta a
apresentar as antíteses sociais ("A
burguesia regeu alegria/ nos grandes salões/.../os negros pelas ruas
e senzalas") e os conflitos -"se a
noite é de luar, clareia/o alferes
Dom Obá guerreia". Um único
reparo: identificar uma "Revolução Industrial" nesse mar de escravidão é no mínimo absurdo.
Não por acaso esses dois sambas estruturam-se de forma similar aos das escolas do primeiro
dia. É que em todos eles o uso e
abuso da alusão foi recurso para
enquadrar as letras na diversidade de explicações historiográficas
estabelecidas quando se tratava
de 1800 para trás. Eis a razão da
preferência acadêmica por este tipo de samba.
Mas, se na República Velha desenhada pela Imperador do Ipiranga ainda é tímido o tratamento de personagens entranhados
em nosso imaginário -Padre Cícero, Lampião e Antônio Conselheiro, "nomes que ficaram na
memória/hoje nesse palco, fazem
história/dessa nação"-, da Nenê
de Vila Matilde em diante a ideologia pede passagem.
O motivo é simples: com o século 20 aumenta o grau de adesão
histórica dos donos da festa, e tanto os artistas a produzem quanto
o público que dela se farta passam
a marcar posição.
Daí quase não haver diferença
entre a letra de "Porque me Orgulho de Ser Brasileiro" e a fala do
trabalhismo acerca do carisma,
da clarividência e do caráter paternal e empreendedor de Vargas -"com coragem/mudou a estrutura do país/o pulso forte/criou
um Brasil melhor/.../o grande
caudilho/suplantava o ditador/fez
uma revolução, o Estado Novo/
teve a sua aclamação/nos braços
do povo!/.../ do trabalhador foi
defensor/em forma de leis.... um
grande pai". Todas as demais referências subordinam-se a esse paradigma. Detalhe: o samba da Nenê foi o primeiro do Grupo Especial a utilizar as palavras "trabalhador" e "cidadania".
Embora discreto, "Yes, Já Temos
Mais que Bananas" percorre o
mesmo caminho da ideologização. Aqui a relação entre os Anos
Dourados e a imagem de JK é sutil, porém central. E se expressa
nas referências ao progresso econômico, às asas de Brasília, à bossa nova e, sobretudo, à televisão e
ao futebol. Mas também na intimidade com que os personagens
históricos são tratados: "Alô! Alô!
Nonô!", "Chateau", "Velho guerreiro", "rei da bola".
O samba da Tucuruvi parece
ter-se inspirado em livro didático
de História escrito por professor
de esquerda. Sua extremada "politização" ("bruxa tá solta/o tio Sam
quer mandar) não encobre - ao
contrário, explicita - a linha
ideologizante. Nomeia-se até alguns ícones da esquerda brasileira, como a tropicália e os grandes
festivais, mas os autores não resistem ao apelo de seus próprios ídolos - Pelé, Ayrton Senna e Elymar.
Da letra da Vai-Vai pouco se pode dizer. Porque embora se pesque aqui e ali referências precisas
aos últimos 15 anos, seu objeto
não é a história, é a esperança.
Manolo Florentino é historiador da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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