São Paulo, terça-feira, 06 de março de 2007

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RUBEM ALVES

Cremação

Estou com medo de ser cremado. Me disseram que as cremações não são feitas no varejo. São feitas no atacado

A CONVERSA poderia ter acontecido assim:
Eu: "Aí é da empresa comercial que crema corpos mortos?
Do outro lado da linha: "Sim. Cremar corpos mortos é o nosso negócio."
Eu: "Quanto custa cremar um morto?"
Do outro lado: "Depende. Os preços vão de trezentos a dez mil reais."
Eu: "Qual é a diferença entre a cremação de trezentos reais e a de dez mil? O serviço de dez mil reais deixa os mortos mais bem cremados?"
Do outro lado: "Não. Todos ficam igualmente bem cremados. A diferença está na roupa em que os mortos são levados para o forno."
Eu: "Roupa? Não sabia que a roupa de um morto fazia diferença..."
Do outro lado: "Ah! Perdão. É preciso explicar. A roupa de um morto a ser cremado é o ataúde. Há os ataúdes de pobre e os ataúdes de ricos.
Eu: Mas que diferença isso faz, para o morto?"
Do outro lado: "Nenhuma diferença para o morto. Faz diferença para os vivos, que se valem dos seus defuntos para exibir a sua riqueza"
Eu: "Posso deixar os serviços pagos adiantadamente?"
Do outro lado: "Não. Terá de ser pago na ocasião."
Eu: Obrigado por sua precisão. Eu as transmitirei aos meus filhos porque o morto a ser cremado sou eu."
Do outro lado: "O senhor faz bem em pensar na sua morte com antecedência. O senhor poderá morrer logo após desligar o telefone."
Assim se encerrou uma conversa verdadeira que não aconteceu. A que aconteceu foi muito diferente.
A pessoa que me atendeu do outro lado da linha falou com voz aveludada, apropriada à gravidade do assunto. Tenho a impressão de que ao fundo se ouvia o "Panis Angélicus". Era uma voz clerical, consoladora. Não usou a palavra "morte" nem uma vez. "Morte" é palavra que não deve ser dita. Ninguém quer morrer. Ele se valia de eufemismos. Eufemismo é quando se usa a palavra "mel" para falar de "fel". Eis aí, professores, uma forma fácil de explicar às crianças o que é eufemismo. Os americanos não dizem "Ele morreu". Dizem "He passed away..." Partiu de viagem para uma terra distante...
O homem de voz aveludada dizia: "Quando essa pessoa vier a faltar..." É assim também que falam os que vendem seguros de vida: "Quando o senhor vier a faltar..." Ele sabe que se disser "quando o senhor morrer" é possível que o cliente não faça o seguro. Quem faz seguro não acredita que vai morrer.
Aí ele delicadamente me perguntou sobre a minha relação com a pessoa que, infelizmente, iria faltar. Disse-lhe que era muito íntima: eu mesmo era a pessoa a ser cremada. A resposta foi-lhe inesperada e ele tratou de me aconselhar a não pensar na morte. "O senhor não devia pensar nisso. Certamente o senhor tem ainda muitos anos de vida pela frente..." Ele falava assim porque esse fora o catecismo que lhe ensinaram.
Mas agora estou com medo de ser cremado. Eu pensava que na cremação os amigos ficavam à espera de que as chamas fizessem o seu trabalho ouvindo Bach, como no filme "Kolya". Mas me disseram que as cremações não são feitas no varejo, uma de cada vez. São feitas no atacado. Os cremantes ficam guardados nalguma geladeira, até que se complete o número mínimo para que o forno seja aceso. Não gosto da idéia. Vão misturar minhas cinzas. Depois, na ressurreição do último dia pode ser que partes do meu corpo sejam colocadas no corpo de um outro e que partes do corpo de um outro sejam colocadas em mim...


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